Em modo de catástrofe: crise humanitária na Venezuela, acontecimento internacional do ano
O desastre económico e o crescente autoritarismo empurram para a miséria um país rico em recursos
O desastre económico e o crescente autoritarismo empurram para a miséria um país rico em recursos
DANIEL LOZANO, CORRESPONDENTE EM CARACAS
Há menos de um mês a organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW) alertou para a “catástrofe humanitária” que atinge boa parte dos 31 milhões de venezuelanos e para a falência do sistema de saúde no país. Calcula-se que mais de 70% da população sofra de malnutrição. Foi criada nova moeda, o bolívar soberano, que tirou cinco zeros ao bolívar forte.
Proporcional ao crescimento da inflação é o êxodo da população para países vizinhos ou para a Europa, onde Espanha, Itália e Portugal são confrontados com um retorno de migrantes em massa; nos primeiros noves meses deste ano terão vindo para Portugal cerca de 5500 portugueses, lusodescendentes e familiares (3000 para a Madeira).
Na Venezuela, outrora destino próspero, residem cerca de 400 mil portugueses e lusodescendentes. Como milhões de venezuelanos, sofrem um clima de violência, censura e repressão política. O quotidiano num Estado falido é marcado por escassez de alimentos, medicamentos e produtos de primeira necessidade, como papel higiénico e sabão.
“Mamã, o pequeno-almoço é café com pão. Está muito bom!” Francis Rodríguez, de 28 anos, ouve vezes sem conta a gravação da mensagem de bons-dias da filha e não contém as lágrimas. Luisiana só tem quatro anos e não percebe porque está separada da mulher que é o centro do seu pequeno mundo. Não sabe nada da hiperinflacão (1.350.000% em 2018, segundo o FMI), do fiasco do sistema económico (perda de 52% do PIB entre 2013 e 2018) nem do colapso de boa parte dos serviços de um país onde dois terços da população perderam mais de 11 quilos.
Na Venezuela, um ano parecem décadas. Este, o pior da sua história, traduz-se em lamentos e queixas que o Governo tenta ocultar com a ficção da propaganda. O país é o mais rico do continente, mas não se nota: as maiores reservas de petróleo do planeta; as segundas reservas regionais de gás e ouro, diamantes e coltan, competindo com as jazidas mais produtivas do mundo.
Luisiana desconhece as realidades do país mas sabe que, neste Natal, tão mágico para ela, o cordão umbilical com a mãe se mantém graças ao WhatsApp da avó e da tia. É assim que esta família do estado central de Carabobo vai conhecendo as vicissitudes diárias por que passa a jovem professora do ensino especial em Cúcuta, cidade colombiana onde se refugiou. Nos últimos dias faz todas as horas extraordinárias que pode, na tentativa de esticar o dinheiro para que a filha tenha roupa para estrear esta quadra.
Francis trabalha como empregada doméstica, nada que ver com o que estudou. Toma conta dos três filhos de um casal empregado, limpa a casa e cozinha, por menos do que o salário mínimo. As coisas não correm melhor a Diana: era técnica de radiologia e, hoje, conforma-se com vender cachorros quentes em Corferias, perto do aeroporto de El Dorado, em Bogotá. Conhece em primeira mão a catástrofe humanitária.
A HRW denunciou a gravidade do “colapso do sistema médico”, que aumentou o número de casos de doenças “facilmente evitáveis com vacinas”. Dos 7300 casos de sarampo aos 2000 de difteria, que fizeram 200 vítimas mortais em dois anos. ONG locais, como a Médicos de la Salud acrescentaram estatísticas lamentáveis, depois de asseverarem que a média de escassez de medicamentos é de 51%: 33% das camas estão inutilizáveis; 43% dos hospitais não têm capacidade para testes laboratoriais e em todo o país só há um tomógrafo a funcionar.
Depois de ter trabalhado meses como segurança em Santiago do Chile, Carlos Ruiz, de Caracas, conseguiu emprego como funcionário administrativo, semelhante ao que tinha na Venezuela. Este jovem de 30 anos foi despedido de um organismo público por não ter entregado aos chefes uma foto que confirmasse o seu voto pró-Governo nas eleições para a Assembleia Constituinte do ano passado. Como Francis e centenas de milhares de compatriotas, está ao corrente das necessidades da família graças ao WhatsApp. A videochamada torna-se uma festa, na qual cada parte tenta perceber a realidade para lá das palavras.
Pelo menos quatro milhões de venezuelanos vão passar as festas longe da terra natal, que nunca tinham pensado abandonar. A ONU calcula que, no próximo ano, a diáspora ultrapasse os cinco milhões. “Os que saíram do país foram vítimas da guerra mediática”, insistiu esta semana Nicolás Maduro, que nega e ridiculariza a dimensão da diáspora, garantindo que os que caminham pelas estradas da Colômbia, Equador e Peru levam nos bolsos um mínimo de 5000 dólares.
“Lá, tínhamos tudo e é por isso que custa tanto adaptarmo-nos”, declara Kelly, de 21 anos, a alegria de um posto de lavagem de carros em Ayacucho, Peru. Em Buenos Aires chamam aos empregados de mesa venezuelanos o sorriso da Argentina. Neste Natal, quase todos irão utilizar aplicações e redes sociais para se sentirem perto, à distância. O país sempre celebrou com devoção estes dias, comprando roupa para a ocasião competindo para fazer as hallacas (carne guisada envolta em folha de bananeira) mais saborosas do bairro.
Agora, a Navidad transformou-se num tour de force do Governo, para manter uma falsa sensação das festas “fantásticas” que Hugo Chávez batizou de Chavidad. O fracasso na distribuição de pernis de porco, brinquedos e ingredientes das hallacas, nos últimos anos, levou o Governo bolivariano a apresentar a carne a preço subsidiado. As queixas continuam, por causa da pequena quantidade distribuída, situação que, em 2017, provocou um conflito com Portugal, que Maduro acusou de se vergar ao império e de não lhe entregar a carne em questão.
É mais um Natal triste, entre a ausência de enfeites e os apagões elétricos e a dependência das remessas de dinheiro, quase 2500 milhões por ano. O tradicional pão de presunto custa 3500 a 6000 bolívares soberanos, quando o salário mínimo mensal é de 4500. Nada resta da miragem da reconversão monetária de agosto.
William Sánchez, que trabalha num quiosque das colinas de Santa Mónica, em Caracas, é especialista em medir desvalorizações. Pega num papel e num lápis, o mesmo com que faz as somas e subtrações de um negócio que, por falta de papel, já quase não vende jornais: desde a chegada ao poder de Chávez, há 20 anos, a moeda perdeu oito zeros. O custo de um refresco, hoje de 200 soberanos, equivaleria a 20 mil milhões de bolívares de finais do século XX. Um euro vale 500 bolívares soberanos.
“O Natal vai ser difícil por causa da fome, da miséria e das mesas com lugares vazios”, protestou o dirigente opositor Francisco Sucre. Poucas horas antes tinham vindo a público imagens da festa esplendorosa que o Supremo Tribunal organizou para juízes e amigos.
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