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Brasil, à direita, marche! Jair Bolsonaro, figura internacional do ano

Bolsonaro só fez parte da campanha na rua antes de ter sido esfaqueado
Bolsonaro só fez parte da campanha na rua antes de ter sido esfaqueado
FOTO ANDRÉ COELHO/GETTY IMAGES

Começou como um candidato-anedota e acabou como o Presidente-eleito

Já esteve mais longe. Começou como absoluto improvável e acabou 38º Presidente do Brasil, eleito com confortáveis 55%. Faltam dez dias para Jair Messias Bolsonaro tomar posse do Palácio do Planalto. Sinónimo de susto, o homem que quer parecer novo traz o passado mais conservador do Brasil, a saudade do autoritarismo militar. Mesmo para quem nunca o viveu, como a maioria dos seus eleitores: jovens, qualificados e com rendimento acima da média.

Quer parecer novo mas andava há muito nas bordas do poder. Mais de duas décadas, embora garanta que não é político. Começou vereador no Rio de Janeiro e fez-se deputado federal. Em julho tinha 7% das intenções de voto e era visto como uma anedota. Mas venceu, definindo-se como candidato do não: não às quotas para as minorias étnicas, não ao casamento homossexual, não às reservas para índios.

Os eleitores, contudo, disseram-lhe sim e ele fez-se acompanhar por nove militares: um general como vice, sete ministros (Defesa, Segurança Institucional, Secretaria de Governo, Minas e Energia, Infraestrutura, Ciência e Tecnologia e Controladoria da União) e a Secretaria de Assuntos Estratégicos. Mais homens fardados do que nos governos da ditadura militar. Foi buscar a estrela mediática Sérgio Moro — juiz que prometeu nunca entrar na política — para combater a corrupção e o crime organizado. Paulo Guedes, economista da Escola de Chicago, berço do neoliberalismo, é o homem de todas as contas; o polémico Onyx Lorenzoni está na Casa Civil; a ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos é pastora batista e diz que é hora de a igreja tomar o poder; o futuro MNE, que o aquecimento global é invenção de marxistas. São 22 polémicas à espera de agir.

Por mérito próprio ou demérito da concorrência, em consequência do ódio ao Partido dos Trabalhadores (PT), Bolsonaro já provocou uma profunda alteração na sociedade brasileira. Trouxe à tona e tornou público e explícito um pensamento conservador que fermentava sob a visão utópica do país do samba e do sol e que encontrou no capitão reformado do Exército um exímio porta-voz. Bolsonaro desperta sentimentos contraditórios: salvador da pátria capaz de recolocar o Brasil na ordem ou defensor da tortura e risco para a democracia.

COM A CRUZ NA BOCA E A FAMÍLIA À MÃO

Adepto da comunicação direta, o seu primeiro discurso foi nas redes sociais, que o promoveram através de uma campanha de baixíssimo custo. Sublinha que “o poder popular não precisa mais de intermediação porque as novas tecnologias permitiram ligação direta entre o eleitor e seus representantes”. Tal poderá, porém, trazer-lhe problemas com a Justiça, que investiga o uso ilegal do Whatsapp pelos seus partidários, financiado por empresários, para difundir falsidades.

Construiu a imagem sobre a força de uma personalidade truculenta e, eleito, não defraudou as expectativas: anunciou que quer mudar a embaixada brasileira para Jerusalém, aproximar-se de Donald Trump, modificar o sistema educativo, acelerar o programa de privatizações, colocar as reservas indígenas a render, revolucionar a Segurança Social.

“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” foi o bordão e o lema repetido na noite em que venceu as eleições, de mãos postas em prece e olhos fechados a agradecer ao Senhor de milhões de brasileiros. Jair é católico, mas foi batizado no rio Jordão, em Israel, com os filhos, aproximando-se dos evangélicos, grandes responsáveis pela cavalgada final de votos na segunda volta das presidenciais, quando garantiu o apoio da Igreja Universal do Reino de Deus. A fé e a faca amealharam-lhe os necessários sufrágios. A faca que lhe entrou na barriga em plena campanha eleitoral e fez dele vítima sofredora e herói renascido.

Apoiou o discurso nas orientações de Olavo de Carvalho, ex-astrólogo, considerado o “pai espiritual da nova direita brasileira” e autor de um dos seus livros de cabeceira: “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”. Bolsonaro busca espelho na redefinição olaviana do conceito de conservadorismo: “Significa fidelidade, constância, firmeza. Não é coisa para homens de geleia. ”

Carvalho defende uma “democracia plebiscitária”. Após a campanha sem meios de comunicação como intermediários, chega a governação partilhada, defensora da ideia de um país de dimensões continentais e com desafios de impacto planetário, governado em articulação com a população. E sempre com a família por perto: à semelhança de Trump, Bolsonaro tem como principais conselheiros os três filhos. Um deles já lançou a ideia da adoção da pena de morte, a ser decidida num referendo. O pai diz que não, mas sabe-se lá, tal é a volatilidade das opiniões de Jair.

O HOMEM QUE EVACUA O REAL

Sob a capa de básico, Bolsonaro exige interpretação. O “brio e aprumo militar” tão apregoados têm os seus senãos. Ainda no ativo foi condenado por ter planeado colocar uma bomba no quartel — foi absolvido no Supremo — e sofreu punições por declarações e conduta impróprias. Num documento secreto do Exército dos anos 80, revelado pela “Folha de São Paulo” em 2017, foi avaliado pelos superiores como tendo “excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente”. Para o seu superior hierárquico à época, coronel Carlos Pellegrino, o então tenente “tinha permanentemente a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado aos seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos”. A “tigrada”, como dizia o ex-Presidente militar Ernesto Geisel, não está toda com ele. É esperar para ver.

O militar reformado apresenta-se como impoluto paladino da honestidade. Porém, foi eleito pelo Partido Progressista, o mais citado na operação ‘Lava Jato’, com 21 dos 50 deputados a contas com a justiça. E nada disse sobre o assunto durante 11 anos de direção do PP, que abandonou em 2016. No ano seguinte, admitiu na rádio que o partido recebera dinheiro ilegal da JBS-Friboi para a campanha de 2014. “O partido recebeu propina sim, mas qual partido não recebe propina?”, disse então à “Folha”. Já em 2018, questionado pelo mesmo jornal sobre uso indevido de subsídio de habitação (“auxílio-moradia”) como parlamentar, respondeu: “Esse dinheiro eu usava para comer gente”.

É Bolsomito, como gostam de o chamar os seus defensores. Há 61 anos, o filósofo francês Roland Barthes redefiniu de forma clarividente os conceitos de mito, parecendo querer antecipar o retrato do novo governante: “O mito é um sistema de comunicação, uma mensagem. Por aí se vê que não pode ser de modo nenhum um objeto, conceito ou ideia; é um modo de significação, uma forma” e “ao tornar-se forma, o sentido afasta a sua contingência; esvazia-se, empobrece-se, a história evapora-se, nada mais resta do que a letra”, porque, explica, “a função do mito é evacuar o real”. Mas Bolsonaro existe e dia 1 deverá subir a rampa e colocar a faixa presidencial. Depois? Dizem que Deus é brasileiro, é esperar que volte das férias. Mas José Dirceu, estratego do PT, condenado a 41 anos na ‘Lava Jato’, deixou uma praga, há dias, em entrevista ao “Estado de São Paulo”: “Vamos deixar o Bolsonaro sentar na cadeira. Aquela cadeira queima.”

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