Brasil, à direita, marche! Jair Bolsonaro, figura internacional do ano
Começou como um candidato-anedota e acabou como o Presidente-eleito
Começou como um candidato-anedota e acabou como o Presidente-eleito
Jornalista
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Já esteve mais longe. Começou como absoluto improvável e acabou 38º Presidente do Brasil, eleito com confortáveis 55%. Faltam dez dias para Jair Messias Bolsonaro tomar posse do Palácio do Planalto. Sinónimo de susto, o homem que quer parecer novo traz o passado mais conservador do Brasil, a saudade do autoritarismo militar. Mesmo para quem nunca o viveu, como a maioria dos seus eleitores: jovens, qualificados e com rendimento acima da média.
Quer parecer novo mas andava há muito nas bordas do poder. Mais de duas décadas, embora garanta que não é político. Começou vereador no Rio de Janeiro e fez-se deputado federal. Em julho tinha 7% das intenções de voto e era visto como uma anedota. Mas venceu, definindo-se como candidato do não: não às quotas para as minorias étnicas, não ao casamento homossexual, não às reservas para índios.
Os eleitores, contudo, disseram-lhe sim e ele fez-se acompanhar por nove militares: um general como vice, sete ministros (Defesa, Segurança Institucional, Secretaria de Governo, Minas e Energia, Infraestrutura, Ciência e Tecnologia e Controladoria da União) e a Secretaria de Assuntos Estratégicos. Mais homens fardados do que nos governos da ditadura militar. Foi buscar a estrela mediática Sérgio Moro — juiz que prometeu nunca entrar na política — para combater a corrupção e o crime organizado. Paulo Guedes, economista da Escola de Chicago, berço do neoliberalismo, é o homem de todas as contas; o polémico Onyx Lorenzoni está na Casa Civil; a ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos é pastora batista e diz que é hora de a igreja tomar o poder; o futuro MNE, que o aquecimento global é invenção de marxistas. São 22 polémicas à espera de agir.
Por mérito próprio ou demérito da concorrência, em consequência do ódio ao Partido dos Trabalhadores (PT), Bolsonaro já provocou uma profunda alteração na sociedade brasileira. Trouxe à tona e tornou público e explícito um pensamento conservador que fermentava sob a visão utópica do país do samba e do sol e que encontrou no capitão reformado do Exército um exímio porta-voz. Bolsonaro desperta sentimentos contraditórios: salvador da pátria capaz de recolocar o Brasil na ordem ou defensor da tortura e risco para a democracia.
Adepto da comunicação direta, o seu primeiro discurso foi nas redes sociais, que o promoveram através de uma campanha de baixíssimo custo. Sublinha que “o poder popular não precisa mais de intermediação porque as novas tecnologias permitiram ligação direta entre o eleitor e seus representantes”. Tal poderá, porém, trazer-lhe problemas com a Justiça, que investiga o uso ilegal do Whatsapp pelos seus partidários, financiado por empresários, para difundir falsidades.
Construiu a imagem sobre a força de uma personalidade truculenta e, eleito, não defraudou as expectativas: anunciou que quer mudar a embaixada brasileira para Jerusalém, aproximar-se de Donald Trump, modificar o sistema educativo, acelerar o programa de privatizações, colocar as reservas indígenas a render, revolucionar a Segurança Social.
“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” foi o bordão e o lema repetido na noite em que venceu as eleições, de mãos postas em prece e olhos fechados a agradecer ao Senhor de milhões de brasileiros. Jair é católico, mas foi batizado no rio Jordão, em Israel, com os filhos, aproximando-se dos evangélicos, grandes responsáveis pela cavalgada final de votos na segunda volta das presidenciais, quando garantiu o apoio da Igreja Universal do Reino de Deus. A fé e a faca amealharam-lhe os necessários sufrágios. A faca que lhe entrou na barriga em plena campanha eleitoral e fez dele vítima sofredora e herói renascido.
Apoiou o discurso nas orientações de Olavo de Carvalho, ex-astrólogo, considerado o “pai espiritual da nova direita brasileira” e autor de um dos seus livros de cabeceira: “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”. Bolsonaro busca espelho na redefinição olaviana do conceito de conservadorismo: “Significa fidelidade, constância, firmeza. Não é coisa para homens de geleia. ”
Carvalho defende uma “democracia plebiscitária”. Após a campanha sem meios de comunicação como intermediários, chega a governação partilhada, defensora da ideia de um país de dimensões continentais e com desafios de impacto planetário, governado em articulação com a população. E sempre com a família por perto: à semelhança de Trump, Bolsonaro tem como principais conselheiros os três filhos. Um deles já lançou a ideia da adoção da pena de morte, a ser decidida num referendo. O pai diz que não, mas sabe-se lá, tal é a volatilidade das opiniões de Jair.
Sob a capa de básico, Bolsonaro exige interpretação. O “brio e aprumo militar” tão apregoados têm os seus senãos. Ainda no ativo foi condenado por ter planeado colocar uma bomba no quartel — foi absolvido no Supremo — e sofreu punições por declarações e conduta impróprias. Num documento secreto do Exército dos anos 80, revelado pela “Folha de São Paulo” em 2017, foi avaliado pelos superiores como tendo “excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente”. Para o seu superior hierárquico à época, coronel Carlos Pellegrino, o então tenente “tinha permanentemente a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado aos seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos”. A “tigrada”, como dizia o ex-Presidente militar Ernesto Geisel, não está toda com ele. É esperar para ver.
O militar reformado apresenta-se como impoluto paladino da honestidade. Porém, foi eleito pelo Partido Progressista, o mais citado na operação ‘Lava Jato’, com 21 dos 50 deputados a contas com a justiça. E nada disse sobre o assunto durante 11 anos de direção do PP, que abandonou em 2016. No ano seguinte, admitiu na rádio que o partido recebera dinheiro ilegal da JBS-Friboi para a campanha de 2014. “O partido recebeu propina sim, mas qual partido não recebe propina?”, disse então à “Folha”. Já em 2018, questionado pelo mesmo jornal sobre uso indevido de subsídio de habitação (“auxílio-moradia”) como parlamentar, respondeu: “Esse dinheiro eu usava para comer gente”.
É Bolsomito, como gostam de o chamar os seus defensores. Há 61 anos, o filósofo francês Roland Barthes redefiniu de forma clarividente os conceitos de mito, parecendo querer antecipar o retrato do novo governante: “O mito é um sistema de comunicação, uma mensagem. Por aí se vê que não pode ser de modo nenhum um objeto, conceito ou ideia; é um modo de significação, uma forma” e “ao tornar-se forma, o sentido afasta a sua contingência; esvazia-se, empobrece-se, a história evapora-se, nada mais resta do que a letra”, porque, explica, “a função do mito é evacuar o real”. Mas Bolsonaro existe e dia 1 deverá subir a rampa e colocar a faixa presidencial. Depois? Dizem que Deus é brasileiro, é esperar que volte das férias. Mas José Dirceu, estratego do PT, condenado a 41 anos na ‘Lava Jato’, deixou uma praga, há dias, em entrevista ao “Estado de São Paulo”: “Vamos deixar o Bolsonaro sentar na cadeira. Aquela cadeira queima.”
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