“A minha geração, que será profundamente afetada pelo Brexit, tem de fazer alguma coisa”
Jenny Matthews
A frase é de William Dry, um estudante de Oxford de 20 anos, que este ano congelou a matrícula para tentar travar o Brexit. No referendo de 23 de junho de 2016, cujo segundo aniversário se assinala este sábado, votou a favor da saída, mas concluiu que “todas as promessas eram mentira”. Agora luta para reverter um processo complexo, em marcha lenta e sem fim conhecido, porque acredita que as consequências do Brexit, impossíveis de prever antes do voto, são nocivas o suficiente para que os britânicos se pronunciem nas urnas sobre o acordo final
Em 1946, apenas um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, o escritor e jornalista britânico George Orwell publicou aquele que agora sabemos ser só mais um dos seus textos intemporais: “Política e a Língua Inglesa”. O ensaio, sobre a utilização das palavras para desinformar, e não para o contrário, é uma espécie de mini-Bíblia daqueles que não se conformam com o resultado do referendo que, há dois anos, retirou o Reino Unido da União Europeia.
Andrew Adonis, membro da Câmara dos Lordes e um dos mais ardentes defensores de uma segunda votação, escreveu recentemente um texto - de resto publicado numa revista, a “New European”, que germinou do sentimento de frustração contra o resultado - onde aplica os pressupostos de Orwell à política britânica atual, passando uma espécie de atestado muito póstumo à argúcia do escritor britânico.
Em “A Política e a Língua Inglesa”, Orwell escreve o seguinte: “A linguagem política é desenhada para que as mentiras se tornem verosímeis e para dar a aparência de robustez ao mais puro dos ventos.” Andrew Adonis considera que o mesmo se passou com as promessas feitas por aqueles que defenderam a saída do Reino Unido da UE. “Por exemplo, Theresa May promete uma parceria profunda e especial com a União Europeia, quando, na verdade, estamos a perder os laços com a União e a prejudicar qualquer relação especial.” Também no campo dos auspícios económicos, o representante dos trabalhistas na Câmara Alta diz que os britânicos foram enganados pela linguagem: “Tentam dizer-nos que estamos a ver nascer uma nova era de comércio sem fricções, quando na verdade estamos prestes a edificar milhares de barreiras comerciais e tarifas que atualmente não existem.”
Algumas sondagens são como um alfinete no balão de entusiasmo dos que querem reverter o Brexit. Esta semana, a empresa YouGov mostra que ainda não há assim tanta gente a apoiar um segundo voto: 43% dizem que não devia acontecer, contra 35% que dizem que sim. Os restantes não têm opinião formada. E ainda há um outro dado. Mesmo entre as pessoas que votaram pela permanência, apenas 63% considera que deve haver um segundo voto. Entre os que escolheram sair, o apetite por um novo voto é ainda mais escasso: 73% não o deseja.
Mas também há números que funcionam como combustível para o idealismo dos grupos que, este sábado, esperam reunir muitos milhares de pessoas na maior marcha anti-Brexit que o mundo já viu. Uma sondagem da ICM para o diário britânico “The Guardian” encontrou 58% dos britânicos disponíveis para um segundo referendo, com 42% contra - uma diferença de 16 pontos. Já esta sexta-feira, um outro empurrão da empresa Survation: confrontados com a pergunta “Quando as negociações terminarem, apoiaria ou não a realização de um referendo para aprovar ou desaprovar o acordo final com Bruxelas?", apenas 25% dos britânicos responderam que não.
Um grupo pró-UE colocou no relvado à frente do Parlamento as figuras em versão “superherói” dos deputados conservadores que apoiam a permanência do Reino Unido na UE
Foto Henry Nicholls/REUTERS
O arrependido
Lord Adonis é apenas uma das várias vozes que no último ano se assumiram como apoiantes de um novo referendo. A democracia dita que se respeite a vontade da maioria dos cidadãos - e a maioria dos cidadãos que votaram, votaram pela saída. Só que desde a campanha até agora nada mudou - e por isso muito está a mudar na forma como muitos britânicos avaliam o Brexit.
As mudanças estruturais - como a possível saída do mercado único, a questão das fronteiras com a Irlanda do Norte ou a imigração - ainda não estão decididas e a profunda complexidade das negociações na área do comércio, a única pasta que os apoiantes da saída queriam manter intacta, criou frustrações tanto nos “remainers” (da palavra “remain”, permanecer) como nos “leavers” (de “leave”, sair).
William Dry, de 20 anos, era um dos últimos. No dia 23 de junho de 2016 votou a favor da saída. “Como muitos, acreditei nas promessas que nos fizeram; que íamos ter mais dinheiro para o nosso serviço nacional de saúde, decidir as nossas leis fora de Bruxelas e fazer os nossos próprios acordos comerciais, mais lucrativos. Agora posso dizer que estou muito envergonhado com a minha ignorância na altura”, diz o estudante, do segundo ano de Filosofia, Política e Economia em Oxford.
Dry é presidente do “Our Future Our Choice”, ou “O Nosso Futuro A Nossa Escolha” (OFOC). “É uma sigla engraçada, porque quando a dizemos, sem olharmos para as letras, pode parecer um palavrão, mas também são as iniciais de uma condição clínica, o ‘Overwhelming Feeling of Concern’, [ou ‘Sentimento Avassalador de Preocupação’] e ambas estão certas em relação àquilo que o nosso grupo sente em relação ao Brexit”, diz o jovem, a partir do “quartel-general” onde, lado a lado com muitos outros grupos de pressão, prepara a marcha “The People’s Vote” que, espera, venha a inundar as ruas de Londres no segundo aniversário do referendo.
“Um tipo que se converte a qualquer coisa em que não acreditava antes tem sempre muito mais garra. Sente-se uma enorme responsabilidade para reverter o que até ali se tinha feito mal. A minha geração, que será profundamente afetada pelo Brexit, tem de fazer alguma coisa, temos de pressionar os partidos, principalmente os trabalhistas”.
Dry ficou “desiludido” com os trabalhistas que, no seu entender, “sempre defenderam os jovens, os trabalhadores e as comunidades isoladas”. Agora, “que precisamente esses grupos se veem mais afetados do que qualquer outro com o fim de vários direitos e subsídios ligados à União Europeia, o Labour desistiu da oposição”, diz.
O OFOC foi fortemente influenciado por movimentos centristas como o La République en Marche!, em França, que nasceu em tão pouco tempo e alastrou de forma quase orgânica até conseguir eleger um presidente, Emmanuel Macron, e por outras iniciativas como o “Telefona à tua Avó”, uma aposta dos jovens irlandeses na altura do referendo sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo que concluíram que falando pessoalmente com os seus familiares teriam mais hipóteses de modificar as mentalidades mais conservadoras.
“Uma grande parte do nosso trabalho tem sido falar com as pessoas e pedir que se dirijam aos gabinetes dos seus deputados e exijam coragem. Porque respeitar o voto é uma coisa, e a maioria dos britânicos de facto votou para sair, mas ninguém votou nesta saída de certeza. Eles não estão a ser traidores à Nação, como as capas dos jornais dizem, eles estariam a ser corajosos se votassem a favor de uma consulta sobre este acordo que ainda não conhecemos”, diz Dry.
“Pingavam alegorias”
Na madrugada em que todos os seus medos se condensaram num paralelo pronto a ser arremessado à primeira pessoa que lhe dissesse que tinha votado pelo Brexit, James McGrory, nessa altura coordenador do grupo Britain Stronger in Europe, e agora diretor do Open Britain, foi o mensageiro que nunca quis ser. “A sala estava cheia de pessoas expectantes, metade de olhar vazio, metade com lágrimas nos olhos”, diz ao Expresso.
“Dizer a um grupo exausto de ativistas na casa dos 20 anos que todos aqueles meses tinham servido para pouco foi das coisas mais difíceis que fiz na vida”. Para dissolver o nó na garganta “foi preciso álcool” e o único bar aberto de madrugada, quando os resultados começaram a escorrer pelos ecrãs de todos aqueles millennials, era o The Hope (“A Esperança”) perto do mercado de carne de Smithfields, no leste de Londres.
“Quanta ironia! Um bando de jovens tristes num bar chamado Esperança, a beber litros de cerveja ao lado dos talhantes de batas cheias de sangue que tinham acabado pouco antes o turno no mercado. Pingava alegoria daquela cena”, diz McGrory. Aí perdeu um pouco a esperança, mas logo pensou que aqueles meses todos tinham servido pelo menos para reunir uma base de contactos gigantesca de gente que se opunha à saída. E não estava pronto a desperdiçá-la.
Esse grupo transformou-se e, apesar de se falar muito de um “segundo referendo”, McGrory acha essa promessa “tóxica, confrontacional e divisiva”. “Muitas pessoas não querem um segundo voto geral, porque parece que se está apenas a caminhar por caminhos percorridos. O que as pessoas precisam, e o que nós defendemos, é um referendo ao acordo final que o governo traga de Bruxelas”.
O "Best for Britain" começou por pedir um referendo novo, com a mesma pergunta, mas apoia agora os grupos que pedem um referendo ao acordo final
Foto Simon Dawson/REUTERS
Para isso é preciso apoio parlamentar. “As sondagens mostram que apenas um em cada dez cidadãos considera que as negociações estão a correr bem. Na minha opinião são uma enorme confusão e vão levar a um péssimo acordo, porque obviamente tudo foi prometido antes de podermos falar com Bruxelas”, diz o diretor, de 35 anos, que antes tinham trabalhado para os Liberais Democratas, que também pedem um voto sobre o acordo final.
“Os novos factos que vieram a lume depois do referendo, como o dinheiro que vamos ter que pagar pelo ‘divórcio’, menos ou mais regulamentado acesso ao maior mercado do mundo, os possíveis problemas com a Irlanda ou a impossibilidade de fecharmos fronteiras, tornam este referendo não uma segunda votação sobre a saída, mas sim um voto a favor ou contra uma realidade completamente diferente. É por isso que é preciso termos uma palavra a dizer quanto ao acordo final”, diz ainda.
Não vai ser fácil - há muitos descrentes na força desta onda - mas é possível. “Há claramente uma atenção muito forte sobre este assunto neste momento, as pessoas querem ouvir outras soluções, mas primeiro é preciso que os deputados rejeitem, com coragem, um acordo que nos prejudicará. Depois disso podemos pensar em aprovar uma lei para referendar esse acordo”, diz McGrory.
A logística é complicada. Primeiro o Parlamento tem de rejeitar o acordo, em outubro ou novembro - e, para isso, é preciso que todos os trabalhistas e pelo menos dez conservadores rebeldes votem contra. Depois seria preciso redigir e aprovar legislação para a realização de um segundo referendo - e para isso seria preciso convencer Jeremy Corbyn, o líder dos trabalhistas, que considera a UE um “clube de capitalistas”.
Seguir-se-ia pelo menos meio ano de negociações e, nessa altura, já depois da data marcada oficialmente para a saída (29 de março de 2019), os restantes 27 membros da UE teriam de permitir a extensão do tempo de manobra a um grupo de políticos que há dois anos mal podia esperar para zarpar para longe do Continente.
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