A hesitação do Papa face ao genocídio dos rohingya
Repressão da minoria muçulmana ganha proporções de genocídio mas, na presença das autoridades birmanesas, Francisco não a condenou
Repressão da minoria muçulmana ganha proporções de genocídio mas, na presença das autoridades birmanesas, Francisco não a condenou
Jornalista
O Papa Francisco habituou crentes e não crentes a verbalizar incómodos como nunca antes um seu antecessor tinha feito. Esperava-se, pois, que esta semana, de visita a Myanmar (antiga Birmânia) e ao Bangladesh, o líder da Igreja Católica se solidarizasse, de forma explícita, com o drama da minoria muçulmana, como fizera a 27 de agosto, na Praça de São Pedro: “Chegam-nos tristes notícias sobre a perseguição aos nossos irmãos e irmãs rohingya”, disse então.
O Papa não perdeu a face e, esta sexta-feira, no final de um encontro inter-religioso em Daca, a capital do Bangladesh, recebeu 16 muçulmanos rohingya, recém-chegados aos campos de refugiados do país. "A vossa situação é muito dura", disse. "A presença de Deus hoje também se chama rohingya." Francisco não evitou, porém, duras críticas pelo facto de, à sua passagem pela Birmânia, se ter remetido ao silêncio sobre o drama da minoria muçulmana.
Na terça-feira, num discurso na capital, Naypyidaw, com a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi a ouvi-lo, o Sumo Pontífice limitou-se a apelar à reconciliação e ao “respeito por todos os grupos étnicos e identidades”. No país, de maioria budista, o sentimento antimuçulmano é antigo, generalizado e “rohingya”, uma palavra proibida.
Francisco evitou um conflito diplomático com o país que o acolhia, mas saiu moralmente diminuído. “Quem perdeu a dignidade não foram os rohingya, mas antes aqueles que silenciaram o Papa, influenciando-o a não usar a palavra rohingya”, reagiu o ativista birmanês Khin Maung Myint, ao diário “The Guardian”, à margem da missa campal presidida pelo Papa, em Rangum.
Em setembro passado, as Nações Unidas qualificaram a perseguição aos rohingya como “limpeza étnica” — a expulsão de um grupo de uma região, o que, ao abrigo do direito internacional, não é crime. Acabada de regressar dos campos de refugiados rohingya no Bangladesh, Alicia de la Cour Venning faz uma avaliação mais severa. Para esta investigadora da Universidade Queen Mary, de Londres, está em curso uma campanha de genocídio — a destruição completa de um grupo —, que caminha a passos largos para a sua etapa final, a da matança em massa.
“O genocídio é um processo que ocorre durante um longo período, às vezes décadas”, diz ao Expresso a investigadora. “Começa com a estigmatização de uma comunidade, através de atos discriminatórios, continua com o assédio psicológico e/ou físico, isolando o grupo em campos ou guetos. A comunidade é sistematicamente enfraquecida e os seus membros privados de direitos humanos básicos, como a possibilidade de trabalharem, terem acesso à educação, movimentarem-se em liberdade, de serem proprietários, de se casarem e — no caso dos rohingya — de terem cidadania. Depois de tudo isto, chega a etapa das matanças em massa.”
Foi assim na Alemanha nazi, com os judeus, e no Ruanda (1994), com os tutsis. Na Birmânia, “a perseguição em curso segue os mesmos padrões de ações previamente reconhecidas como genocídios”, confirma Alicia de la Cour. A visita aos campos insere-se numa investigação que está a ser desenvolvida pela International State Crime Initiative. “Ouvimos relatos de como militares birmaneses, polícias e civis entraram nas aldeias dos rohingya e queimaram casas, pilharam propriedades, violaram mulheres e executaram todos os civis, incluindo mulheres, crianças e idosos, que tentavam fugir.”
Tudo acontece sem que, a nível internacional, haja um esboço de reação em socorro dos rohingya. Em defesa da Birmânia, pelo contrário, China e Rússia garantem o veto a qualquer resolução condenatória no Conselho de Segurança da ONU. E pelo mundo não falta quem abra a porta aos generais de Rangum. Em abril, o chefe das forças armadas birmanesas, Min Aung Hlaing, foi recebido em Berlim e Viena. Pela mesma altura, Israel vendia à Birmânia lanchas de patrulha rápidas e sofisticadas Super-Dvora MK III. “Sanções específicas contra os militares seria um bom começo” para tentar inverter a campanha de genocídio, defende a investigadora.
O drama dos rohingya tem epicentro num estado ora designado Rakhine (terminologia birmanesa) ora Arakan, palavra inglesa que deriva da designação... portuguesa: Arracão (ver ao lado). Estende-se ao longo de 560 km da costa oeste, junto ao Golfo de Bengala, e abriga 3,2 milhões de habitantes: 2,1 milhões são budistas e mais de um milhão, muçulmanos. Entre as duas comunidades, a tensão é constante.
A mais recente vaga de violência seguiu-se à morte de 12 agentes das forças de segurança, a 25 de agosto, em ataques contra postos de fronteira levados a cabo pelo Exército de Salvação dos Rohingya do Arracão (Arsa), “um pequeno grupo, mal organizado e mal armado, uma ameaça muito baixa para o governo”, garante Alicia de la Cour. “A razão que leva à formação destes grupos decorre da discriminação constante e da opressão por parte do Estado birmanês. Os grupos pegam em armas como resposta à política criminosa do Governo.”
Os ataques do Arsa dão às autoridades “um pretexto para reprimirem. É o que têm feito, uma punição coletiva contra os civis rohingya”. Desde agosto, mais de 600 mil já se fizeram à estrada, rumo ao Bangladesh e aos campos junto à cidade de Cox Bazar — Hiram Cox (1760-1799) foi um diplomata britânico que se destacou na área da reabilitação de refugiados. Com eles levaram a roupa do corpo e um sonho: “Querem todos regressar”, diz a investigadora. “É a terra deles.”
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: MMota@expresso.impresa.pt