Internacional

Appleby. Uma operadora de offshores fundada em 1898

Na origem da maior parte dos ficheiros da nova fuga de informação sobre paraísos fiscais do Consórcio Internacional de Jornalistas de Informação está um escritório de advogados criado nas Bermudas e que faz parte do “Círculo Mágico” da indústria de offshores mundial

Will Fitzgibbon, ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação)

Uma fuga de informação de 6,8 milhões de registos confidenciais com origem nas Bermudas expôs as vidas secretas offshore de políticos e vigaristas e as elaboradas estratégias de evasão fiscal seguidas pela Apple, a Nike e outros gigantes do mundo corporativo. Emails, registos de clientes, solicitações bancárias, documentos judiciais e outros ficheiros obtidos pelo jornal alemão “Süddeutsche Zeitung” (e partilhados com o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação – ICIJ – e outras organizações de media) revelam o funcionamento interno da Appleby, um dos mais prestigiados escritórios de advogados especializados em offshores, entre a década de 1950 e 2016.

Sediada nas Bermudas, a Appleby não é uma consultora fiscal. Mas é um membro líder da rede global de advogados, contabilistas, banqueiros e outros operadores que criam esquemas para clientes empenhados em evitar os impostos ou manter as suas finanças em segredo, ajudando-os a criar empresas-fantasma, fundos fiduciários (trusts) e outras entidades offshore. Norte-americanos de todos os 50 estados representam a maior fatia de trabalho da Appleby. Clientes de primeira importância incluem bancos como o Citigroup, o Bank of America, o HSBC, o Credit Suisse e o Wells Fargo, bem como empresas de auditoria e consultoria como a KPMG, a Ernst & Young e a PricewaterhouseCoopers.

Os ficheiros da Appleby mostram quão difícil é para os operadores offshore evitar lidar com criminosos, políticos corruptos e outros clientes discutíveis. A firma não respondeu a perguntas detalhadas do ICIJ, mas negou quaisquer alegações de irregularidades. “É verdade que não somos infalíveis. Onde descobrimos que houve erros, atuamos rapidamente para corrigir as coisas e fazemos as necessárias notificações às autoridades relevantes”, disse.

“Círculo Mágico”

A Appleby nasceu em 1898 na colónia britânica das Bermudas como o escritório particular do major Reginald Woodifield Appleby, um magistrado que se tornou membro do parlamento da ilha e foi nomeado cavaleiro por “serviços públicos”. Quando o parlamento local se reuniu em julho de 1940 para debater o primeiro imposto de rendimentos na ilha, o major Appleby comparou este à tortura. Hoje, as Bermudas continuam a atrair residentes locais e estrangeiros com uma taxa fiscal de zero.

Desde que se expandiu para fora das Bermudas em 1979, a Appleby transformou-se numa instituição global com mais de 700 funcionários distribuídos por quase todos os principais paraísos fiscais, desde as Ilhas Caimão nas Caraíbas até à Ilha de Man na Europa, as Maurícias em África e Hong Kong na Ásia. Recebeu prémios de “Firma Legal Offshore do Ano” e é citada como fazendo parte daquilo a que os iniciados chamam de "O Círculo Mágico Offshore", um grupo informal dos maiores escritórios de advocacia offshore do mundo. Antigos colaboradores são hoje deputados, juízes e funcionários do governo, e pelo menos uma jurisdição de baixa tributação recorreu aos seus conhecimentos para desenhar as suas próprias leis offshore.

A empresa tem polido a sua imagem pública com patrocínios à America's Cup, a corridas infantis e a vendas de bolos. O material publicitário da Appleby põe em relevo diversas iniciativas de beneficência. Os seus clientes incluem princesas, primeiros-ministros e estrelas de Hollywood. A Appleby tem trabalhado para alguns dos oligarcas mais ricos do mundo — na Rússia, no Médio Oriente, na Ásia e em África. Globalmente, as suas receitas ultrapassam os cem milhões de dólares por ano.

Entre os pingos da chuva

Em 29 de junho de 1993, com a memória de combates no Kuwait ainda fresca, um subcomité da Câmara dos Representantes norte-americana descobriu que a Crescent Petroleum, uma grande empresa de petróleo privada, era provavelmente uma “empresa de fachada” do Presidente iraquiano Saddam Hussein. A Crescent Petroleum era cliente da Appleby desde 1984. Só quando procurou assistência jurídica para se reestruturar, em 2013, é que o escritório de advocacia pareceu reparar nos seus antecedentes – incluindo o fato de o irmão do proprietário ser o líder do programa de armas nucleares no Iraque.

Outro cliente que terá passado entre os pingos da chuva foi Ayre Laniado, administrador e coproprietário da Omega Diamonds, uma empresa belga a operar na bolsa de diamantes em Antuérpia e que em 2013 concordou pagar cerca de 200 milhões de dólares para resolver acusações sobre a não declaração ao fisco das receitas obtidas com a venda de diamantes africanos. A Appleby criou um novo trust para a empresa belga em abril de 2014, o que irritou o seu diretor de compliance três meses depois, quando ele descobriu o que tinha acontecido. “As alegações são extremamente graves e estão relacionadas com diamantes de sangue”, escreveu a um colega. No início de 2016, a Appleby ainda era trustee (administrador de trust) de Laniado.

Diariamente, a Appleby usa software concebido para reduzir o erro humano e identificar clientes de risco. O manual da empresa exige aos funcionários que verifiquem potenciais clientes através de uma extensa pesquisa online e atualizem os registos de qualquer pessoa com ligações à política uma vez por ano. A empresa e as suas subsidiárias têm efetuado auditorias internas, mantido folhas de cálculo sobre aquilo a que chamam empresas “problemáticas” e produzido “cartões amarelos” para garantir que a informação sobre as empresas é correta.

O escritório da Appleby nas Ilhas Virgens Britânicas rejeitou trabalho que envolvia Boris Shemyakin, um magnata russo do imobiliário, após verificações online dos seus antecedentes mostrarem que ele tinha sido alvo de acusações relacionadas com uma fraude de milhares de milhões de dólares. Os controlos também funcionaram quando o escritório de advocacia recusou ajudar na compra de dois jatos Gulfstream de 20 milhões de dólares para dois filhos de um ex-ministro do governo azeri e um homem chamado Manouchehr Khangah, o ‘testa de ferro’ de um ex-político que liderou “uma das operações mais corruptas no Azerbaijão”, segundo telegramas diplomáticos norte-americanos.

A caridade começa em casa

Entre 2005 e 2015, porém, mais de uma dúzia de inspeções internas e externas aos escritórios da Appleby na Ilha de Man, nas Ilhas Caimão, nas Ilhas Virgens Britânicas, nas Bermudas e em Londres descobriram falhas que podiam ter envolvido a Appleby num litígio e gerado “sérias consequências financeiras e reputacionais”. Quando a Autoridade Monetária das Bermudas auditou uma subsidiária da Appleby em outubro de 2014, encontrou fraquezas “chave ou altamente significativas” em nove áreas. Os registos internos mostram que a empresa pôs de parte 500 mil dólares para uma multa, mas a sua existência e dimensão nunca foram divulgados publicamente.

Em 2009, uma ação de classe (ação judicial coletiva) foi interposta no Canadá em nome de quase 10 mil entidades, incluindo enfermeiros, professores e advogados, que tinham posto mais de 100 milhões de dólares num esquema offshore apresentado como uma iniciativa de caridade que prometia 10 mil dólares de crédito em troca de uma “doação” de 2500. Os queixosos alegaram que já tinham perdido milhões quando as autoridades fiscais do Canadá declararam o esquema inválido. Um dos réus no processo era o suposto cérebro do programa de caridade, Edward Furtak. Outro foi o escritório da Appleby nas Bermudas, acusado de ter ajudado a transferir centenas de milhões de dólares de um lado para o outro num “fluxo circular de fundos” que rendera 20 milhões de dólares a Furtak e à sua família.

Um juiz escreveu que a Appleby tinha obrigação de saber de onde o dinheiro vinha e como era utilizado. A ação de classe contra Furtak cedo foi resolvida por acordo. O processo contra a Appleby demorou mais. Em maio de 2017, a firma concordou em pagar 12,7 milhões de dólares, sem admitir ter cometido ilegalidades. Há na Appleby quem receie que vá demorar muito até a empresa absorver todos os impactos que o caso teve na sua reputação. Conforme a equipa de compliance avisou em tempos: “Qualquer nova investigação que revele um administrador de trust como um fantoche controlado por um criminoso será outro prego no caixão da indústria”.

Colaboraram nesta história: Frederik Obermaier, Bastian Obermayer, Emilia Diaz-Struck e Rigoberto Carvajal

Tradução de Luís M. Faria

https://www.icij.org

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