Exclusivo

10 anos da guerra na Síria

“Quem sou eu para perder a esperança?”

“Quem sou eu para perder a esperança?”

Afraa Hashem, professora de Inglês, é uma das protagonistas da película "For Sama", que demonstra as agruras dos sírios que vivem debaixo dos aviões e do que cai deles. Foi detida duas vezes pelas forças do regime de Assad, numa das vezes foi agredida ao ponto de perder o bebé que levava dentro dela. “Estes 10 anos foram cheios de conquistas, de horror, mas, mesmo perdendo muitos dos meus amigos, ousámos sonhar e nunca nos vamos arrepender da dignidade”

Afraa Hashem viveu quase a vida toda em Alepo, no norte da Síria, uma das cidades mais castigadas do mundo, culpa da guerra civil no desbobinar da Primavera Árabe. “É revolução, não é uma guerra. Por favor”, corrige com um riso sereno esta professora síria, que antes da primeira bomba dizer ao que vinha só pensava em ganhar dinheiro para sobreviver. O conceito de sobrevivência mudou.

“Estes 10 anos foram cheios de conquistas, de horror, mas, mesmo perdendo muitos dos meus amigos, até sonhos e ambições, muitas coisas, ousámos sonhar e nunca nos vamos arrepender da dignidade”, conta ao Expresso uma das protagonistas de “For Sama”, uma película de Waad al-Kateab, crua e terna ao mesmo tempo, que reflete o drama que vivem os sírios debaixo dos aviões e do que cai deles. “Tínhamos de nos sacrificar pelas próximas gerações. Esta mudança não vai acontecer em dois ou 10 anos, talvez não vejamos a nossa liberdade e os princípios da nossa revolução cumpridos, mas quem sabe os nossos filhos ou netos possam testemunhar isso. Temos de pagar o preço.”

Afraa, então mãe de dois filhos, ensinava Inglês na escola primária, em Alepo. “Passava todo o meu tempo a ensinar. Não tinha quaisquer ambições porque eu tinha só de sobreviver, de trabalhar arduamente, de ganhar dinheiro para sobreviver.” A semente do gosto por ensinar foi plantada pelo pai, que também era professor e graças a isso viajaram bastante.

E Alepo, como era? “É uma cidade económica. A economia da Síria foca-se em Alepo e Damasco. Mas era uma cidade calma”, vai contando, até que o guião sofre um ligeiro abanão: “As pessoas só não confiavam em ninguém porque sofreram em 1980, pelo que aconteceu com a Irmandade Muçulmana. Muitos inocentes foram detidos, não se podia confiar em ninguém fora da família… até mesmo dentro da família”. No início dessa década, Hafez al-Assad, o então Presidente e pai do futuro sucessor, Bashar al-Assad, ordenou um feroz ataque contra a incómoda Irmandade Muçulmana, um grupo radical que fazia oposição ao poder, uma história que resultou em dezenas de milhares de mortes, principalmente em Hama.

Depois de pedir que troquemos “guerra” por “revolução”, esta síria, de 39 anos, explica o contexto da Primavera Árabe, que derrubou alguns regimes há uma década. Esperou, ansiosa, que tal movimento chegasse à Síria. Até que um dia chegou. “No primeiro movimento ou protesto, em Damasco, eu estava na minha escola e a minha amiga, uma professora curda, perguntou-me se tinha ouvido falar nele. Nem conseguia imaginar que eles tivessem poder para dizer algo. Não achava que o regime ia permitir repetir aquele movimento. E fiquei tão feliz”, ilumina-se-lhe a voz.

Alepo ganhou lugar no roteiro daquele movimento e Afraa quis fazer parte, porém Salem, o marido, aconselhou-a a não fazê-lo: “‘Não é seguro para ti porque serás detida, se calhar vão violar-te’, disse-me. E não pude responder àquilo. Depois de três meses, participei pela primeira vez num movimento com o meu marido. Foi muito… [suspira]... foi estranho sentir aquilo, foi como sentir que estás numa prisão e de repente és livre. Foi o momento mais bonito da minha vida, e o mais poderoso. Eu derrotei o meu medo”.

Mas há sempre alguns acontecimentos inevitáveis que realmente dão bom nome a esse adjetivo. Afraa acabou por ser detida duas vezes. Na primeira estava grávida e, depois de agredida, perdeu o bebé. “Isso não me derrotou”, diz soltando uma tímida e breve gargalhada. Seis meses depois, voltou a ser detida. Salem, hoje com 45 anos, procurou-a. Ela ligou-lhe. Nesta altura Afraa fica sem fôlego, perde-se no que parecem ser rumores de lágrimas. Silêncio. “Ele veio, entregou-se e estivemos juntos na prisão. A minha família teve de entregar dinheiro para me libertarem. Depois fui para a zona rebelde”, conta. Foi aí, em Idlib, que teria finalmente o terceiro filho. Naya, uma menina, tem hoje sete anos. Os outros dois filhos, Wissam e Zain, têm 16 e 15.

Estes 10 anos mudaram-na como mulher e mãe. “Eu costumava ser uma pessoa responsável, mas a responsabilidade mudou. Depende da vulnerabilidade”, esclarece. E uma parte desse período está imortalizado em “For Sama”, um filme que chegou a ser nomeado para os Óscares e que venceu, em 2020, a categoria de Melhor Documentário nos Prémios BAFTA e de Melhor Documentário em Cannes.

“Eu abri a minha vida à Waad, quando estava em Alepo, para me filmar. Ficámos amigas chegadas. Eu costumava filmar-me todos os dias, documentando todos os momentos da minha vida para talvez enviar para o ‘The Guardian’, BBC e outros. Seriam os últimos momentos da minha vida. A Waad filmou entre 2014 e 2016. Divertimo-nos e vivemos aterrorizadas pelas bombas.”

Na altura que viu o filme, Afraa admite que estava deprimida. “Chorei muito. Depois, lembro-me de estar feliz por ter ajudado crianças. Lembrei-me de todos os momentos nos bairros e nas escolas, até me lembrei dos meus amigos que morreram. Não consegui parar de chorar durante três dias. Agradeci muito à Waad por este trabalho difícil. Se calhar, um dia, quando os meus netos me perguntarem o que aconteceu no meu país, isto será suficiente para lhes dizer a verdade”, desabafa.

Sem uma pergunta ancorada à ideia, Afraa explica o porquê de ter ficado tanto tempo na “cidade mais perigosa do mundo”, Alepo: “Tinha uma responsabilidade com a minha cidade. Se tivesse saído [mais cedo], talvez tivesse três filhos, os meus filhos, mas decidi ficar. Se calhar vão pensar que sou uma mulher imprudente, uma mãe imprudente, mas eu participei [no movimento] para apoiar outras 300 crianças. Uma pessoa tem de responder pelos seus deveres”.

A família de Afraa Hashem, tal como a de Waad, está em Londres com o estatuto de refugiada. A vida é bem diferente agora, diz com um riso airoso. Quando viu tantos polícias e militares lembrou-se do seu país, mas depois percebeu que “são boas pessoas”. Afraa está a frequentar um mestrado de Ensino de Inglês para Falantes de Outras Línguas, na Universidade de Hull.

Largando o retrovisor, como vê os amanhãs? “Sempre terei esperança, é por isso que ainda sorrio”, adivinha-se um esgar simpático dos lábios. “Quem sou eu para perder a esperança? As pessoas ainda sofrem. Querem salvar as suas vidas, não querem ser presos, mas têm a esperança de um dia poderem voltar ao seu país, às suas cidades e casas. Eu tenho uma casa desde que nasci.”

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: htsilva@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate