Qual o impacto real do investimento estrangeiro na habitação?
A avenida Duque de Loulé, em Lisboa, foi das teve mais obras de reabiltação entre 2015 e 2019, construindo-se habitação, mas também hotéis
D.R.
O Expresso e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) juntam-se para debater as últimas cinco décadas de democracia em Portugal. Nos próximos 10 meses, vamos escrever (no Expresso) e falar (na SIC Notícias) sobre 10 temas diferentes da economia e da sociedade e o primeiro é a habitação
Ana Baptista
Os factos
2007 é considerado para os consultores imobiliários como um ano de viragem. Foi nesse ano que o investimento em imobiliário em Portugal superou a fasquia dos €1,2 mil milhões, o maior valor alguma vez atingido até à data. Contudo, segundo dados da Cushman & Wakefield, a maior parte do dinheiro era nacional.
Este investimento, contudo, não inclui a compra de habitação, apenas a aquisição de ativos como lojas, centros comerciais ou edifícios de escritórios.
Em 2015, quando a economia e a imagem de Portugal lá fora começou a melhorar depois da intervenção da Troika, é que os estrangeiros começaram a surgir em força. Nesse ano, dos €1,9 mil milhões investidos,€ 1,7 mil milhões eram estrangeiros, segundo dados da CBRE.
Em 2018, quando o investimento em imobiliário atingiu o valor mais alto de sempre - €3,45 mil milhões - €3,1 mil milhões eram estrangeiros.
Nestes volumes já se incluem investimentos em habitação, não propriamente na compra de casas já concluídas, mas na aquisição de terrenos para construir ou imóveis para reabilitar, como por exemplo, para fazer Alojamento Local, tanto da parte de investidores nacionais como estrangeiros.
O AL cresceu significativamente em 2018 e 2019, tendo depois caído com as novas regras do Governo que limitavam o número de AL criados em determinadas zona (como em Lisboa) e também com a pandemia.
Camas para AL e valor mediano das novas rendas na AML, segundo dados do INE, Travel BI e Turismo de Portugal
De fora destes montantes mantém-se, contudo, o dinheiro aplicado através dos vistos de gold que, na sua maioria, foram para a compra de habitação já concluída.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Serviço Estrangeiros e Fronteiras (SEF) disponibilizados pela Fundação FFMS, no bolo total investido na compra de casas, os vistos gold têm um fatia muito pequena.
Transações de alojamentos familiares em Portugal associada aos vistos gold
Em 2018 e 2019, os preços das casas subiram, ao ano, cerca de 12%, segundo dados do Confidencial Imobiliário (CI). Em 2022, o aumento foi e 18,7%, o maior aumento dos últimos 30 anos.
De acordo com um estudo da Century 21 divulgado no início deste ano e que tem como base os preços de uma casa de 90 m2 (T2 ou T3), na Área Metropolitana de Lisboa (AML), por exemplo, os aumentos foram dos €163,6 mil em 2019 para os €223,4 mil em 2022. Já na Área Metropolitana do Porto (AMP), a subida foi de €106 mil em 2019 para €165,3 mil em 2022.
Já as rendas, passaram a estar acima dos €500 em todas as regiões do país para uma casa com as mesmas dimensões, quando em 2019 havia zonas com valores abaixo dos €400.
Segundo dados do INE, no 4º trimestre de 2022 as rendas subiram 10,6%.
Os preços de venda subiram 4,3% no primeiro trimestre deste ano, segundo dados do CI.
Como chegámos até aqui
O investimento estrangeiro em imobiliário começou a estar na ordem do dia por causa dos vistos gold, do alojamento local, das facilidades fiscais para não residentes e, mais recentemente, dos nómadas digitais. Mas desde 2003 que há investimento estrangeiro em imobiliário, tendo até disparado em 2006, segundo dados da Cushman & Wakefield.
Contudo, a partir de 2008, os volumes de investimento, tanto nacional como estrangeiro, caíram a pique por causa da crise do subprime e depois por causa da intervenção da troika em Portugal, em 2011. Segundo dados da CBRE, em 2012, o investimento total em imobiliário foi de apenas €110 milhões, sendo cerca de metade estrangeiro.
Foi precisamente nesse ano que foi criado o programa de vistos gold, cujo objetivo era atrair capital estrangeiro para Portugal numa altura de crise. Para isso, dava vistos de residência a quem comprasse casas a partir de €500 mil, mas também a quem investisse na criação de empresas e de empregos.
No início, a maioria desse capital foi aplicado na compra de habitação já concluída, aliás, foram uma das principais razões para escoar o excesso de oferta de casas que havia no Parque das Nações na altura. Por isso mesmo é que não se incluía nos montantes de investimento em imobiliário referenciados acima pelas consultoras imobiliárias, mas sim no valor das transações de compra anuais que não distinguiam que fatia se referia aos vistos gold.
Só mais tarde, depois de 2015 e quando a imagem de Portugal lá fora começou a recuperar, é que algum dos investimentos feito através do programa dos vistos gold se direcionaram para a compra de terrenos e de imóveis devolutos para fazer casas. Mas a maior parte desses projetos foram feitos por grandes promotores imobiliários estrangeiros, como a suíça Vanguard Properties, as espanhola Merlin e Kronos ou a belga Krest. Por isso é que, em 2018, o investimento em imobiliário comercial (excluindo a compra de casas já prontas), atingiu os €3,45 mil milhões, dos quais €3,1 mil milhões foram estrangeiros.
O problema é que essas casas eram, na sua maioria, de luxo ou para uma classe média alta, com o preço de um T1 a começar nos €200 mil ou mais. Tanto o diretor do Confidencial Imobiliário, Ricardo Guimarães, como o presidente da Associação Portuguesa dos Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), Hugo Santos Ferreira, consideram que esses promotores - e também os nacionais - só fizeram casas ditas de luxo porque as condições fiscais e legais em Portugal não permitiam fazer casas a preços mais baixos. Referiam-se, por exemplo, ao IVA a 23% para a construção nova ou aos atrasos nos licenciamentos que atrasam a obra e, consequentemente, o valor final do imóvel.
Ora, muitas dessas casas feitas por estrangeiros acabaram por ser compradas também por estrangeiros que, alem de terem um maior poder de compra, vinham aproveitar o facto de Portugal estar no topo dos destinos turísticos e para viver. Para João Pereira dos Santos, professor de economia no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e coordenador científico na FFMS, tanto estes investimentos como o dos vistos gold, dos residentes não habituais ou dos nómadas digitais, apesar de representarem pouco no bolo total da compra de casas - que continua a ser na sua maioria de portugueses que procuram uma casa para viver - tiveram um impacto indireto nos preços das casas e contribuíram para o aumento de preços que vemos hoje.
Por exemplo, os vistos gold, que tiveram um peso 1% a 2% no número de transações anuais e de 3% a 4% no total investido na compra de casas em Portugal, teve um efeito de contágio, porque os 500 mil euros [o valor a partir do qual se tinha acesso ao visto] serviram como referência e o mercado fazia os preços a partir daí e deixava de aceitar valores abaixo disto. Há um efeito psicológico e sociológico”, diz.
O mesmo e passa com o Alojamento Local (AL), repara, lembrando um estudo que fez com a economista Susana Peralta sobre o impacto que teve a decisão da câmara de Lisboa de banir novos registos em determinadas áreas da cidade já muito sobrecarregadas de AL. Nessas zonas, concluiu o estudo, “os preços das casas aumentaram menos”, diz. Ou seja, por um lado, o crescimento do AL foi bom porque ajudou na reabilitação das cidades, mas também retirou oferta do mercado, ainda que muitos desses imóveis estivessem “em zonas que não são boas para viver, mais turísticas e noturnas”, repara o professor de Economia.
Vários agentes ligados ao sector rejeitam esta tese de que os estrangeiros é que são os culpados pelo aumento dos preços e garantem que a principal causa é a falta de oferta. João Pereira dos Santos não nega que haja falta de oferta e que haja uma desadequação à realidade demográfica atual. “A composição das famílias diminuiu, há mais divórcios e mais pessoas a viver sozinhas e as casas são muito grandes para a procura”. Mas não deixa de notar que tal como no caso do AL, “há também mais hotéis a serem construídos, o que retira zonas para casas”.
Outra visão é de que o problema da habitação está mais evidente porque há uma disparidade maior entre os preços e os rendimentos.
38%
foi quanto subiram os preços das casas entre 2019 e 2022, o que compara com um crescimento de 9% do rendimento das famílias só cresceu 9% no mesmo período, concluiu um estudo da Century 21 e do Confidencial Imobiliário
Inês Duque
Para onde caminhamos
Mais uma vez, o programa Mais Habitação é para onde caminhamos, porque ele institui muitas alterações, algumas consideradas boas, outras nem por isso.
Neste tema em particular, um dos pontos em que há consenso é na medida que cria benefícios fiscais e legais para os investidores fazerem casas a preços mais acessíveis. Uma solução em que se incluem os muitos estrangeiros que fizeram prédios de luxo e que agora se pretende que façam casas para a classe média, negócio para o qual há vontade, segundo a APPII.
Mas no AL e nos vistos gold, não há consenso nenhum, apenas críticas. O Governo decidiu que os vistos gold vão acabar e só os processos pendentes e entregues até 16 de fevereiro de 2023 (quando o programa foi apresentado pela primeira vez) é que vão ser analisados. O AL não acaba, mas todos os apartamentos que estejam em zonas de maior pressão urbanística vão ter de pagar uma contribuição extraordinária de 20% sobre o valor lucrado. Além disso, as licenças atuais continuam em vigor até 2030 e vão ser revistas de cinco em cinco anos e foi criado uma isenção de IRS e IRC para quem transferir esses imóveis para arrendamento de longa duração.
João Pereira dos Santos recorda o que já tinha dito, que muitos dos AL estão em zonas onde as pessoas não querem viver, ou seja, ter arrendamentos de longa duração, e estão também em zonas onde os preços da habitação é mais elevado, o que significa que, a haver essa transferência, as rendas podem não ser acessíveis como desejado pelo Governo.
Para o professor de Economia, não há equilíbrio nestas medidas e estão a fazer-se alterações sem perceber o que aconteceu e o impacto que estes programas tiveram. “Era importante saber quanto é que os vistos gold representaram em IMT e IMI ou para que regiões foram ou ainda quanto é que os estrangeiros que vêm para cá viver contribuem para a economia ou para onde foram os vistos gold”, repara.
“Não dar dados é para esconder a incompetência, é medo de prestar contas e de dizer que falharam, mas não tem mal falhar um prazo”, diz o professor de Economia e autor do estudo sobre Habitação da FFMS, João Pereira dos Santos
O diretor do Confidencial Imobiliário, Ricardo Guimarães sugere mesmo pôr os vistos gold a financiar os programas de habitação acessível e para jovens. “Vamos usar o regime para o que nos faz falta” em vez de acabar com ele cegamente, repara.
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