Portugal é um dos países da Europa com mais proprietários
José Carlos Carvalho
O Expresso e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) juntam-se, novamente, desta vez para debater as últimas cinco décadas de democracia em Portugal. Nos próximos 10 meses, vamos escrever (no Expresso) e falar (na SIC Notícias) sobre 10 temas diferentes da economia e da sociedade e o primeiro é a habitação
Ana Baptista
Os factos
Há 70 e 60 anos. Portugal era um país de arrendatários. A lei que permitia comprar casa só entrou em vigor em 1966, mas só depois do 25 de abril é que se começou, lentamente, a fazê-lo.
Em 1981, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e da Pordata, nesse ano havia mais de um milhão de casas arrendadas, a maior parte das quais (957.498) com uma renda inferior a €15. Isto porque as rendas logo após o 25 de abril, ainda em 1974, as rendas foram congeladas no país todo.
Apenas dez anos depois, com o boom da construção e com o crédito à habitação barato, o número de casas arrendadas tinha caído quase metade, para pouco mais de 500 mil. Na altura, para estimular o arrendamento, o governo de Cavaco Silva liberaliza o mercado, mas apenas para contratos novos. As rendas anteriores a 1990 mantiveram-se congeladas e, por isso, a diferença de preços não foi muita: a maior parte das rendas continuou a ser inferior a €15, apesar de já haver uns 140 mil contratos com rendas de €59.
Em 2001, o total de casas arrendadas subiu para um pouco mais de 740 mil, mas com uma inversão total no valor pago: a maioria das rendas (quase 440 mil) chegava aos €100, e já havia rendas entre €100 e mais de €500.
Mas dez anos volvidos, o mercado de arrendamento parecia estar parado. O número de casas cresceu para 795 mil, ou seja, apenas mais 55 mil alojamentos arrendados numa década, e a maior parte das rendas continuava no escalão inferior a €100. Contudo, cresceu significativamente nos escalões €300 a €399,99; €400 a €499,99 e até no de mais de €500 (quase cinco vezes mais).
20%
era o peso do arrendamento no mercado em 2011
Em 2021, e segundo os Censos, o número de casas arrendadas voltou a crescer e já se aproximava mais dos números de 1981 (922.810).
Mas no valor das rendas, a diferença era substancial. O escalão de menos de €100 desaparece dos dados e, nesse ano, a maior parte casas arrendadas (372.886) tinham rendas entre os €200 e os €399,99 por mês e entre os €400 e os €649,99 mensais (194.047).
Segundo dados INE, disponibilizados pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), entre 2011 e 2021, as rendas médias mensais em Portugal subiram de €235 para €334, sendo o aumento mais expressivo na Área Metropolitana de Lisboa (AML), onde a subida foi de €269 para €403. Mas isto é uma média que engloba as zonas mais caras e as mais baratas.
Só que, de acordo com um estudo da Century 21 divulgado no início deste ano, que cita dados do Confidencial Imobiliário, a renda média contratada para uma casa de 90 m2 (um T2 ou T3) na AML ultrapassava os €900 em 2019 e, em 2022, já passava os €1000.
Segundo os mesmos dados, só Vila Real, Santarém e Viseu tinha rendas inferiores a €400 em 2019. Em 2022, já todas as regiões do país tinham rendas superiores a €500.
Em 2021, Portugal continuava a ser um dos países europeus com a maior percentagem de proprietários.
Como chegámos até aqui
É preciso recuar na história para explicar porque é que Portugal é um país de proprietários e onde a maior parte das famílias só arrenda casa quando os preços de compra ou as taxas de juro estão mais altos.
Passa-se que o conceito de propriedade horizontal que permite dividir um prédio em fracções para serem vendidas não existia até 1966 e, portanto, um particular não podia comprar uma casa, apenas prédios inteiros. Logo havia senhorios que compravam ou faziam os prédios e depois arrendavam as casas.
Mas, mesmo com a lei a mudar em 1966, só depois do 25 de abril, e mais nos anos 89 e 90, é que os portugueses começaram a optar pela compra de casa, porque foi nessa atura que o crédito à habitação ficou mais fácil e que havia um número significativo de construção nova (mais de 1,5 milhões de casas construídas entre 1981 e 2011 segundo dados do INE e da Pordata).
Em 2011, quando começou a crise e Portugal teve de pedir ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI), o arrendamento cresceu, mas não foi apenas porque os bancos estavam a restringir o crédito à habitação e o desemprego estava a aumentar.
De acordo com o arquitecto e ex-presidente do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), Victor Reis, “entre 2011 e 2017 houve mais 140 mil casas arrendadas em Portugal e foi por causa da reforma de 2012, da Lei Cristas. Nessa altura, os proprietários ganharam confiança no mercado e voltaram a arrendar”.
De facto, segundo os Censos 2021, entre 2011 e 2021 a percentagem de arrendatários subiu e a de proprietários desceu, apesar de se manter predominante.
Contudo, poderia ter subido mais.
Em 2014, aos primeiros sinais de melhoria do mercado e de mais abertura dos bancos, as famílias voltaram logo a optar pela compra de casa e isso viu-se nas operações das mediadoras imobiliárias na altura, como a Century 21, a Era ou a Remax, que viram os arrendamentos disparar na crise e logo a seguir cair abruptamente.
Mas, para Victor Reis, o maior problema foi depois, “em 2016, 2017 e 2018, com as reversões que a geringonça fez à Lei Cristas e tudo se retraiu de novo. Nessa altura, “bastava haver duas rendas não pagas para se accionar o despejo, depois passou para três. Podia-se exigir três rendas de caução, reduziram para duas. E a penalidade de 50% do valor da renda que havia para quem não pagasse, passou para 20%. Tudo isto cria um clima de não confiança”.
A isto acresce a falta de confiança nos tribunais e na resolução dos despejos, que apesar de algumas melhorias, continuam a demorar muito tempo, deixando os senhorios meses sem receber rendas e sem poder arrendar a casa vazia. E ainda o facto de as rendas congeladas no governo de Cavaco Silva, ou seja, todas as que são anteriores a 1990, continuarem congeladas hoje, mais de 30 anos depois.
Aliás, confiança parece ser a palavra chave. O economista e professor na Nova SBE, Pedro Brinca, disse recentemente numa conferência organizada pelo Expresso, que “os senhorios têm medo de colocar as casas a arrendar”, precisamente porque não confiam na forma como o mercado está desenhado. E até deu como exemplo um estudo do Idealista que aponta que, em 2022, o número de casas para arrendar no mercado caiu 40%.
Mas além da falta de confiança, há ainda o problema da falta de oferta. Para os promotores imobiliários as rendas estão mais caras porque não há oferta e não há condições para fazer casas com rendas mais acessíveis. Seja porque os licenciamentos demoram anos, seja porque o IVA na construção nova é de 23% quando devia ser de 6% ou ainda porque os custos de construção subiram 23% em 2022, segundo estimativas do Confidencial Imobiliário.
De facto, se entre 1981 e 2011, se construíram mais de um 1,5 milhões de casas, entre 2011 e 2021 foram pouco mais de 110 mil.
Para onde caminhamos
Soluções há muitas: licenciamentos mais rápidos; menos IVA na construção nova; menos impostos nas transações; reverter as alterações feitas à Lei do Arrendamento durante a geringonça; não estar sempre a fazer alterações fiscais e legislativas; desburocratizar processos em vez de os tornar anda mais “picuinhas”, como diz a economista da Nova SBE, Susana Peralta.
O programa Mais Habitação tenta dar algumas repostas, mas continua a haver contestação por exemplo, ao arrendamento coercivo ou ao facto de as rendas só poderem aumentar 2%.
“Os benefícios fiscais que se possam dar ficam sempre aquém face às questões legais e à falta de confiança”, diz o arquitecto e ex-presidente do IHRU, Victor Reis
Outras medidas parecem reunir mais consenso, como a descida do IRS no arrendamento de longa duração que nos contratos de cinco anos passa dos atuais 28% para 25%; nos contratos de cinco a dez anos desce de 23% para 15%; nos contratos entre 10 e 20 anos, cai de 14% para 10% e nos contratos com mais de 20 anos, passa de 10% para 5%.
Ou ainda a isenção de IMI e de IRS para os senhorios que têm inquilinos com rendas anteriores a 1990, ou seja, rendas congeladas ou a cedência de imóveis do Estado para habitação, sejam terrenos ou edifícios novos ou para reabitar, por um período de 90 anos, algo para o qual Hugo Santos Ferreira, da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII) tem algumas expectativas, mas também reservas.
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