Em pouco mais de dois anos de contexto pandémico, a transição digital da sociedade, e em particular de serviços públicos como a saúde, avançou mais do que na década anterior. Foi a demonstração prática de que a necessidade aguça o engenho, mas há riscos no processo de digitalização da prestação dos cuidados de saúde. Este foi um dos alertas deixados pelos especialistas que participaram no debate “Saúde Mais Próxima”, integrado na cerimónia de entrega de bolsas do Programa Gilead Génese.
O médico de família Rui Nogueira defendeu que “fazer medicina sem ver as pessoas não é possível” e pediu humanidade na inovação dos cuidados. “A verdade é que temos de olhar para as iniquidades possíveis quando temos um sistema que pode ser muito bom, mas do qual as pessoas com menos literacia podem ficar excluídas”, sublinhou. O também representante da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde não nega o “avanço incrível” que se traduz em telemedicina, simplificação de processos e introdução de novos canais de comunicação. Acredita ser importante, contudo, apoiar os cidadãos na navegação dentro de um sistema de saúde mais moderno, em especial os mais idosos. “Hoje, as pessoas não precisam de se deslocar, mas precisam de ter acesso a um sítio onde possam entrar no digital. Esse local pode ser a Junta de Freguesia”, exemplifica.
O académico Arlindo Oliveira, professor no Instituto Superior Técnico, valida esta preocupação e vê na criação de soluções simples e robustas a solução para este desafio. “Temos de criar um sistema simples para as pessoas digitalmente competentes, mas acessível às pessoas que não o são.” Do lado dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), entidade responsável pela criação do portal de agendamento das vacinas covid, Luís Goes Pinheiro aponta no sentido da digitalização da saúde além do da modernização das infraestruturas informáticas: a interoperabilidade entre sectores público, privado e social deve ser uma prioridade, bem como a recolha e, sobretudo, o tratamento adequado dos dados para “caminharmos para uma medicina de precisão” que se generalize na prestação de cuidados. “São dados que não têm só de existir, têm de ter qualidade”, reforça o presidente do Conselho de Administração dos SPMS.
Neste esforço de evolução, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é visto como uma ferramenta fundamental, já que disponibiliza cerca de €300 milhões para o investimento nesta área. O líder da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, Óscar Gaspar, considera que a partilha de dados em saúde dentro e fora de fronteiras é um passo necessário para a qualidade dos serviços oferecidos aos doentes. “Os dados são do cidadão. Não são do Estado nem do SNS”, aponta.
Há, porém, desafios a superar para conseguir alavancar a transição digital. Para Arlindo Oliveira, o PRR representa uma “oportunidade única” que permitirá “fazer alterações estruturais e profundas”, desde que seja possível ultrapassar a dificuldade na captação de recursos humanos qualificados na área tecnológica. A guerra internacional pelo talento tem vindo a adensar-se nos últimos anos, e Portugal terá, neste campo, “competição feroz” de países com maior poder financeiro. O cenário é semelhante quando o tema são os equipamentos, que são também, acrescenta Luís Goes Pinheiro, “cada vez mais escassos”. “Não nos podemos esquecer de que no pós-pandemia temos o mundo inteiro atrás dos mesmos recursos”, lembra.
O responsável dos SPMS considera ser essencial assegurar “uma gestão adequada das expectativas” em relação à execução do PRR, para evitar críticas da opinião pública, mas acredita no potencial desta transformação digital. As vantagens são, para todos os oradores, claras: maior agilidade dos profissionais e do sistema de saúde, mais e melhores dados sobre os doentes e o serviço e a possibilidade de potenciar a medicina personalizada. Além dos obstáculos, há que garantir que a velocidade de adaptação impulsionada pela pandemia não é reduzida à medida que diminui o impacto da covid-19 na sociedade. “O que se pede é que não se perca essa aceleração”, remata Goes Pinheiro.
A par da revolução nos hospitais, o apoio à inovação científica e às respostas comunitárias aos problemas da sociedade deve continuar a ser central, em especial numa época marcada pelas crises energética, geopolítica e inflacionária. “No momento em que tantos recursos deixam de estar disponíveis, justifica-se ainda mais o nosso empenho na promoção da investigação científica nacional e de projetos de intervenção comunitária”, realçou o diretor-geral da Gilead Sciences. Na 8ª edição do programa de bolsas de financiamento foram distribuídos €280 mil entre uma dúzia de candidaturas em áreas como a virologia e a oncologia.
A lista dos vencedores 2022
Investigação
Pressing Equipa do i3S procura contribuir para o tratamento do cancro da mama triplo-negativo através da investigação da expressão de genes e proteínas nas células malignas destes tumores.
Hereditariedade Instituto de Medicina Molecular (IMM) quer identificar marcadores das células que originam cancro da mama em doentes com mutação BRCA2. A descoberta poderá ser usada para criar imunoterapias preventivas menos invasivas.
GlycoTarget Faculdade de Medicina Veterinária (ULisboa) investiga nova abordagem para cancro da mama triplo-negativo. Células tumorais são camufladas por um tipo de açúcar que a equipa quer remover para o sistema imunitário detetar as células e removê-las.
UBE2C Este marcador dissemina as células tumorais para o cérebro. Investigação do IMM avalia o seu papel como marcador prognóstico na doença metastática cerebral de cancro da mama, analisando a eficácia de terapias dirigidas.
Vírus respiratórios RNA FARM-ID quer desenvolver primeiro agente antiviral para vários vírus desta categoria para aumentar a resiliência contra ameaças pandémicas. Projeto avalia mecanismo de ação de novos compostos espiro-ß-lactâmicos em sistemas modelo.
Vacina contra VIH O Instituto Universitário Egas Moniz avalia se glicoproteínas quiméricas do invólucro do VIH1/2 podem ser boas candidatas a vacina que proteja da infeção VIH. RNA mensageiro será usado em ratinhos para aferir resposta celular e humoral.
Comunidade
Quebrar a transmissão Liga Portuguesa Contra a Sida vai utilizar o equipamento GeneXpert para monitorizar, na unidade móvel de rastreios, a adesão terapêutica de quem vive com VIH e hepatites virais.
Informar e prevenir A Sol continuará a sensibilizar para riscos do VIH junto de alunos do ensino básico, secundário e universitário. Objetivo é evitar transmissão.
Literacia sobre oncologia pediátrica Renovação do site PIPOP, da Fundação Rui Osório de Castro, para oferecer boa experiência na leitura de notícias, eventos e conteúdos, e promover acesso à informação.
aVista Projeto da Fundação Portuguesa “A Comunidade Contra a SIDA” promove microeliminação de infeções por VIH, VHC e VHB junto de pescadores. Objetivo é diagnosticar atempadamente.
Recover O LabMov quer reduzir sintomas de doentes com condição pós-covid-19 através de programa multimodal de exercício. Contará com cinco atividades com duração de 12 meses.
Detetar Leishmania i3S quer criar um biobanco para determinar o nível de exposição a esta infeção em doentes VIH na região Norte do país. Esta é uma infeção oportunista muitas vezes detetada em fase tardia.
Investigação na Saúde
O Expresso alia-se à 8ª edição do Programa Gilead Génese, que distingue as melhores iniciativas nas áreas da investigação científica e da intervenção comunitária na saúde. Este ano são premiados 12 projetos nacionais das 61 candidaturas submetidas. Desde a primeira edição, em 2013, já foram distribuídos mais de €2,2 milhões a 101 vencedores.
Textos originalmente publicados no Expresso de 11 de novembro de 2022
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