A segurança alimentar está em perigo. Ou não estivéssemos perante uma transformação que coloca em causa todo o edifício da alimentação como o conhecemos. “O funcionamento do sistema alimentar está a sofrer vários obstáculos, ou pressões, de uma forma simultânea”, explica o diretor-geral do Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral do Ministério da Agricultura, Eduardo Diniz, que aponta “quatro pressões que se desenvolvem quer no curto quer no médio e longo prazo”. São elas “os conflitos geostratégicos, em particular a guerra em zonas de produção alimentar, a crise energética, os impactos das alterações climáticas e o abrandamento económico”.
Segundo ele, “a face visível desta situação é o aumento dos custos de produção, que se repercute em toda a cadeia de valor agroalimentar ou mesmo no risco de quebras de abastecimento”, com a certeza de que a “insegurança alimentar é sentida a diferentes escalas nas várias regiões do mundo”. Ou seja, se “nas economias mais desenvolvidas a pressão resulta do impacto da inflação na energia e na alimentação”, noutros pontos do planeta “as populações sofrem” por não serem “capazes de assegurar uma regular dieta saudável e equilibrada”.
De acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), cerca de 830 milhões de pessoas, quase 10% da população mundial, foram afetadas pela fome em 2021, o que significa um aumento de mais 45 milhões do que em 2020 e mais 150 milhões relativos a 2019. Por exemplo, “na região do Corno de África, Etiópia, Sudão do Sul, Somália e Quénia regista-se uma seca severa causada pela falha das quatro últimas épocas de chuva”, elucida o investigador na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Filipe Duarte Santos, que assinala também o impacto do crescimento populacional e dos fluxos migratórios quando se prevê que a população mundial chegue perto dos 10 mil milhões em 2050, mais 2 mil milhões do que agora.
“Episódios climáticos extremos” são cada vez mais comuns, diz Ondina Afonso, presidente do Clube de Produtores Continente. Por isso é importante o “surpreendente caminho de adaptação às diversidades climáticas”, que já está a ser percorrido “através do uso de espécies de plantas ou variedades de sementes mais resistentes”.
O impacto também se sente em Portugal, que apenas tem um grau de autoaprovisionamento de 6% no trigo, segundo dados da GlobalAgriMar. Realça Pedro Fevereiro, diretor-executivo e investigador no InnovPlantProtect, que “o aumento do preço dos alimentos” relacionado com “a crise na Europa Oriental aumenta o risco de fome para a população portuguesa que está no limiar da pobreza: 1.600.000 pessoas vivem com menos de €540 por mês”.
Estratégias como a “Do Prado ao Prato”, da União Europeia, são esforços para aumentar a sustentabilidade e a autossuficiência, mas também comportam riscos. Segundo o economista agrícola do Departamento de Agricultura dos EUA Jayson Beckman, tudo indica que no espaço europeu “as receitas vão cair, a produção vai cair e os preços vão aumentar”.
Parece incrível “como alegremente permitimos esta falta de cuidado relativamente à perda de biodiversidade”, critica Filipa Vasconcelos. Mas para a subinspetora-geral da ASAE, perante uma transformação sistémica imparável, “a melhor maneira de evitar” crises maiores “é através da integração e partilha de problemas para encontrar soluções”.
O que preocupa os portugueses na comida que consomem
<20%
temem a presença de microplásticos, diz a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA)
20-39%
mencionam a presença de corantes, conservantes e aromatizantes artificiais
40-59%
dos portugueses manifestam alerta perante a existência de resíduos de antibióticos na carne
60-79%
realçam doenças nos animais que possam ser transmitidas à produção animal e às pessoas
60-70%
destacam intoxicações alimentares provocadas por bactérias, vírus ou parasitas em alimentos
A (in)segurança em novo debate
Após uma primeira reunião do projeto Conselho de Segurança dedicada à apresentação dos temas a analisar nos próximos meses, o edifício-sede da Impresa foi palco de novo debate, desta feita dedicado em específico ao tema da segurança alimentar e dos grandes desafios globais que esta enfrenta. Maros Ivanic, economista agrícola no Departamento de Agricultura dos EUA, apareceu diretamente do outro lado do Atlântico, via digital, e traçou um cenário difícil, em que a “quebra na produção alimentar” e o “aumento dos preços” no espaço europeu são realidades com as quais os diferentes agentes do sector já têm que lidar. Já Ana Paula Cruz, subdiretora-geral da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, falou das metas ambiciosas da estratégia europeia “Do Prado ao Prato” e deixou um alerta a todos: “2030 é já ali.”
Citações
“Temos uma tempestade perfeita para que a vulnerabilidade aconteça”
Filipa Vasconcelos
Subinspetora-geral da ASAE
“Portugal e os países do Sul da Europa têm que se adaptar a um clima mais seco e mais quente”
Filipe Duarte Santos
Investigador na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
“Não existe uma varinha mágica ou um milagre que resolva tudo”
Pedro Fevereiro
Diretor-executivo e investigador no InnovPlantProtect
Conselho de Segurança
O mundo vive envolto num conjunto de ameaças que exigem uma resposta pronta. O Expresso, em conjunto com a Sonae, Galp, Altice, Allianz, Morais Leitão e ACIN, lança um projeto para avaliar a nossa segurança tecnológica, militar, jurídica, na saúde, no Estado e nas empresas. Ao longo de seis meses queremos construir um Conselho de Segurança, lançando debates, promovendo temas,reunindo especialistas.
Textos originalmente publicados no Expresso de 14 de outubro de 2022
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