Competir e “fazer tudo como os outros”

Inclusão. O confinamento colocou entraves à população com deficiências e o regresso à rotina, além da integração, exige novas conquistas. É o que os projetos de solidariedade se propõem a fazer
Inclusão. O confinamento colocou entraves à população com deficiências e o regresso à rotina, além da integração, exige novas conquistas. É o que os projetos de solidariedade se propõem a fazer
Jornalista
As árvores e o traçado do espaço ainda não deixam adivinhar o que ali vai aparecer mas a expectativa é palpável. Ou não fosse algo que pode mudar a vida dos utentes da Fundação AFID Diferença. É ali, naquele recanto do vasto espaço às portas de Lisboa — mais precisamente em Alfragide — que vai nascer um court de padel pronto a ajudar na integração de uma população que está sempre à procura de chegar mais longe. “Consegui superar todos os desafios”, conta ao Expresso Catarina Seixo, na sede da instituição que apoia pessoas com deficiência. Com síndrome de Tourette, é uma das utentes que tem participado no projeto “Desconfinar em Movimento”. “É muito importante para nós”, explica Catarina, cujo desenvolvimento pessoal passa também pelo trabalho no exterior e pela possibilidade de desmontar estereótipos. Muitas vezes “não nos veem como pessoas, só nos veem como a nossa deficiência. Antes disso, sou a Catarina”.
O próximo passo do projeto, a construção do court de padel, será possível por causa do financiamento obtido através do Prémio BPI/Fundação “la Caixa” Capacitar, que conta com o apoio do Expresso, e que distribuiu €800 mil por 33 projetos de instituições privadas sem fins lucrativos. O padel foi escolhido “por ser um desporto completamente adequado” para os utentes “poderem fazer tudo como os outros”, explica o diretor adjunto da Fundação AFID Diferença, Mauro Fonseca, que vê no desporto uma hipótese de “aumentar a representatividade” e “trazer a sociedade até nós”. A meta é convidar outras equipas e instituições para torneios com os “clientes” da AFID, num espaço que estará aberto também à comunidade. “É importante estar focado e é importante aprender”, sintetiza Hernâni Brazia, que tem défice cognitivo.“Gosto de aprender regras”, explica, ainda mais agora quando foi preciso enfrentar “o medo de ir à rua”. Desafio que vai sendo conquistado, tal como faz Daniel Pinto, que sofre de uma paralisia cerebral. Daniel lembra que “houve uma série de autonomias que foram interrompidas” e que o padel é interessante como “exercício” e “oportunidade de socializar”.
Socializar
O desporto e o contacto comunitário estão também na base do projeto “Vela Solidária” da associação Teia D’Impulsos, que coloca pessoas em risco e com deficiências a aprender in loco como trabalhar numa embarcação à vela ao largo da costa algarvia. “Aprendem trabalho em equipa”, acredita o mentor da ideia, Luís Brito, velejador de alta competição e diretor executivo da instituição. “É um momento de liberdade que é quase único para eles. São pequenas superações que fazem com que a vida deles dentro das instituições seja muito mais fácil.”
A inclusão social e profissional está no topo de lista de prioridades desta população e o projeto da ARCIL — Associação para a Recuperação de Cidadãos Inadaptados da Lousã não é exceção. O “TETRIS — Treino e Inclusão Social”, garante Rita Dias, vai “capacitar jovens e adultos com deficiência”. Membro da equipa de Empreendedorismo, Inovação e Sustentabilidade da instituição, Rita Dias esclarece que se trata de uma resposta inovadora porque “integra um conjunto de pessoas numa unidade produtiva já existente da ARCIL, capacitando-as em contexto simulado e real”. Para a responsável, o “verdadeiro desafio das entidades empregadoras, ao recrutarem esta população ativa e com imensa vontade de produzir, é que o façam numa ótica de criação de valor, abandonando visões estereotipadas de inclusão para simples cumprimento da lei”. Por vezes basta uma ideia e um recanto.
Dados relativos às pessoas com deficiência refletem dificuldades após anos de convergência
Os valores não deixam grande margem para dúvida. Se entre 2016 e 2019 “houve melhorias, ou seja, o desemprego registado estava a diminuir nas pessoas com deficiência”, explica Patrícia Neca, “os dados de 2020 do IEFP relativamente ao mesmo indicador mostram que houve um crescimento de 11,6% face a 2019”. Para a investigadora do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, “este incremento mostra a enorme fragilidade dos progressos que vão sendo alcançados nesta população”. É preciso também lembrar que, na população em geral, se registou um aumento de 30,2% no desemprego no mesmo período, mas há uma diferença importante a considerar: “Estamos em crer que a recuperação para as pessoas com deficiência poderá ser bastante mais difícil.”
A secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, defende que “há que trabalhar para recuperar intervenções em muitas áreas”, desde o “impacto na qualidade de vida das pessoas” à “recuperação das aprendizagens”. Daí a importância acrescida da Estratégia Nacional da Inclusão das Pessoas com Deficiência 2021-2025, que já se encontrava em preparação no período pré-pandemia, agora com áreas que “tiveram de ser reforçadas”. O documento contém 170 medidas de apoio, organizadas em torno de oito eixos de intervenção. Não querem “ter lógicas de resposta que sejam apenas mais uma roda na engrenagem” e em que a população com deficiência é que “tem de se adaptar à realidade. Esta lógica tem de levar aqui um volte-face, e isto não se faz de um dia para o outro”. Ana Sofia Antunes apela também ao “empenho do lado das associações”, com vista a uma “mudança de paradigma para ir ao encontro das necessidades”.
Textos originalmente publicados no Expresso de 6 de agosto de 2021
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