O papel das organizações de base comunitária, como a Liga Portuguesa Contra a SIDA, é chegar às franjas da população com maior dificuldade no acesso aos cuidados de saúde. Todas as semanas a carrinha da associação percorre os concelhos de Lisboa, Loures e Odivelas para propor o teste. “Já fizemos mais de 200 mil quilómetros nestes locais com esta carrinha, mas poderíamos fazer mais se tivéssemos outra”, diz Maria Eugénia Saraiva. Enquanto o Expresso acompanhou uma destas iniciativas, foram muitos aqueles que acederam a participar no rastreio, mas também muitos os que recusaram. “As pessoas mais velhas dizem-nos que não precisam, porque ainda associam o VIH à prostituição e às drogas”, reconhece a presidente da Liga. Neste consultório sobre rodas, os técnicos fazem o teste, oferecem aconselhamento, referenciam pessoas para a toma da profilaxia pré-exposição e distribuem preservativos. “É muito importante estarmos perto daqueles que mais precisam”, reforça.
Quase 18 meses após o início do projeto Horizonte 2030, o Expresso deu voz a dezenas de especialistas, a associações e a pessoas que vivem com VIH. Entre histórias de superação e outras marcadas pela angústia do estigma, os desafios para quebrar a transmissão do vírus são unânimes a todos os auscultados: mais testagem e literacia, melhor acesso a ferramentas de prevenção e, sobretudo, menos preconceito. “Diria que o estigma é transversal e uma luta que existe em todos os países. Há várias camadas de estigma que comprometem a qualidade de vida de quem vive com a infeção”, considera Gonçalo Figueiredo Augusto.
O professor da Escola Nacional de Saúde Pública e um dos peritos que integrou o Conselho Consultivo formado pelo Expresso acredita que esta continua a ser uma das principais razões que justifica a elevada taxa de diagnósticos tardios em Portugal (59%) e na Europa. A equação é fácil de compreender: enquanto existir a ideia, comprovadamente errada, de que apenas alguns grupos correm risco de contrair VIH, a procura proativa do rastreio não é uma preocupação da generalidade da população. “Estas pessoas não se identificam como correndo risco e não se testam. Os profissionais de saúde muitas vezes também não os identificam como estando em risco e não propõem o teste”, lamenta a infecciologista Isabel Aldir.
Para os especialistas, a resposta passa por generalizar o rastreio e sugeri-lo sempre que um cidadão tem contacto com os serviços de saúde. “Podemos pensar em alargar o rastreio com esta opção de que, por defeito, toda a gente faz [o teste]”, sugere a secretária de Estado para a Promoção da Saúde, Margarida Tavares. Porém, a prioridade deve ser, consideram médicos e representantes das organizações ligadas ao VIH/SIDA, evitar que o diagnóstico positivo aconteça, e para isso será fundamental contar com vontade política e com financiamento a campanhas de prevenção. “Os jovens hoje não vivem com a preocupação do VIH”, afirma Ricardo Baptista Leite, médico e ex-deputado, que defende a importância de “abordar o tema nas escolas”.
Maior aposta na sensibilização, mais investimento na disponibilização de métodos de prevenção (ver caixa) e no alargamento do acesso aos cuidados de saúde são ingredientes considerados essenciais para travar a transmissão do vírus. Em Portugal, os casos têm vindo a cair nas últimas duas décadas e a qualidade de vida de quem carrega a infeção tem aumentado, mas há ainda caminho a percorrer para que o país possa atingir as metas definidas pela ONU-SIDA: chegar a 2030 com 95% dos casos identificados, 95% dos diagnosticados em tratamento e, destes, 95% com carga viral indetetável.
De acordo com a eurodeputada Sara Cerdas, o cumprimento destes objetivos é valorizado pelos organismos da União Europeia (UE). “O compromisso é também europeu”, sublinha. A representante do PS em Bruxelas acredita que, embora a saúde seja um domínio da responsabilidade dos países da UE, “as instituições europeias podem ter um papel proativo na elaboração de políticas que promovam a literacia em saúde, o combate ao estigma, a testagem e rastreio e o acesso universal aos cuidados de saúde”. Questionada sobre se vê como possível a meta de 2030, Sara Cerdas aponta que “Portugal está a cumprir os objetivos” e mostra-se “confiante de que seremos capazes”.
Os desafios do Governo
Aumentar o acesso à medicação preventiva e estabilizar os apoios às organizações de base comunitária são duas das prioridades do Ministério da Saúde. O sistema de financiamento das associações que trabalham junto da população é, para Margarida Tavares, algo que deve ser revisto para “dar dignidade” às iniciativas que desenvolvem. A secretária de Estado para a Promoção da Saúde reconhece as dificuldades denunciadas pelas organizações, com as quais o Estado tem protocolos de colaboração, em especial na renovação anual dos projetos financiados. Por esta altura, entre maio e junho, terminam muitos destes apoios e o seu regresso deixa as instituições em ansiedade financeira — sem donativos, podem ter de interromper a atividade e despedir funcionários. “Lamento a demora [na renovação], mas não tenho a mais pequena dúvida de que vai ser resolvida muito em breve”, garante a responsável. O objetivo, diz ainda, será criar “uma forma mais sustentável” na relação com “parceiros óbvios e insubstituíveis do Serviço Nacional de Saúde”. Até ao final do ano, a distribuição do medicamento que protege da infeção por VIH será alargada aos cuidados de saúde primários e às associações, numa estratégia de prevenção.
Novos desafios
O Expresso — com o apoio das principais associações de doentes na área do VIH e da ViiV Healthcare — criou um projeto para pensar as principais prioridades políticas, médicas e sociais nesta área do VIH. Na base está um conselho de especialistas, que tem produzido recomendações e caminhos para melhorar as condições de trabalho dos profissionais de saúde e a qualidade de vida dos doentes.
Textos originalmente publicados no Expresso de 2 de junho de 2023