Envelhecer com a infeção já é uma realidade

Inovação: avanços na terapêutica criaram a primeira geração de idosos que encara o vírus como uma doença crónica em vez de mortal. Desafio central: garantir apoio médico, social e psicológico
Inovação: avanços na terapêutica criaram a primeira geração de idosos que encara o vírus como uma doença crónica em vez de mortal. Desafio central: garantir apoio médico, social e psicológico
Francisco de Almeida Fernandes
Quanto tempo tenho?” Esta foi a primeira pergunta que ‘Clara’ fez ao médico quando descobriu, aos 22 anos, que estava infetada com VIH e percebeu que teria o futuro hipotecado. O diagnóstico aconteceu na década de 80, numa altura em que o conhecimento sobre o vírus era limitado e o estigma dominava. Nas últimas quatro décadas, muito mudou na ciência e hoje um teste positivo não carrega o medo da morte. “Pela primeira vez na história estamos a viver uma primeira geração de pessoas que está a envelhecer com a infeção”, assinala Catarina Esteves, enfermeira na Unidade Funcional de VIH do Hospital de Cascais que, no seu serviço, segue doentes com mais de 80 anos.
‘Clara’, como prefere ser chamada para evitar o reconhecimento que temeu a vida toda, testemunhou o progresso da terapêutica que transformou o vírus em doença crónica. Os cocktails de 20 comprimidos diários foram reduzidos para uma dúzia, mais tarde para sete. “Agora tomo dois medicamentos por dia numa toma única. É uma grande evolução”, reconhece. Mas os avanços não se circunscrevem ao número de fármacos. A diferença marcante está na eficácia, na toxicidade e nos efeitos secundários que provoca ao organismo. Dores musculares, desregulação intestinal, náuseas ou até mesmo lipodistrofia, responsável pela redução abrupta da gordura facial, eram consequências frequentes que não só afetavam a adesão ao tratamento, como podiam deixar sequelas psicológicas.
Embora os peritos ouvidos pelo Expresso não existem dúvidas de que o envelhecimento com VIH é uma realidade, alertam que há desafios associados à infeção. Um deles é a possibilidade da antecipação de doenças cardiovasculares, da hipertensão e da insuficiência renal, que reforça a importância de “uma vigilância muito regular da saúde” para ser possível “prevenir” ou, pelo menos, agir precocemente, avança Catarina Esteves. Isto exige, sublinha, maior proximidade aos cuidados de saúde e generalização de equipas multidisciplinares para um acompanhamento personalizado e permanente. No entanto, a qualidade de vida depende em igual medida do que o psicólogo Rui Reis, da Liga Portuguesa Contra a Sida, considera ser o “suporte familiar e social”. “As organizações de base comunitária têm um papel fundamental nessa missão. Isso faz-se também através do apoio psicológico”, esclarece.
Aos 53 anos, o sofrimento na voz de ‘Clara’ é exemplo do peso da saúde mental junto de quem lida com uma condição eterna e que depende de consultas semanais — quinzenais quando se sente melhor — há duas décadas. “Esta doença, na idade em que me foi anunciada, roubou-me grande parte da minha vida, porque a ideia de constituir família e ter filhos morreu ali”, conta. Infetada durante uma intervenção cirúrgica na adolescência, escolheu enfrentar o vírus e a depressão crónica que a assola de forma solitária, com a dor partilhada apenas com um familiar e dois amigos. O medo da discriminação e da rejeição está sempre presente.
Rui Reis confirma que ‘Clara’ não é caso único e realça que “muitas destas pessoas colocaram a vida em stand by sempre a pensar se iriam viver tempo suficiente”, com consequente impacto no isolamento e afastamento social. “É preciso dar uma resposta e é aqui que falhamos. O nosso Serviço Nacional de Saúde falha ao nível da saúde mental”, lamenta. E quando o Estado falha, são organizações como a Liga que garantem o apoio psicológico e social gratuito, o aconselhamento nutricional ou a testagem, serviços que procuram descentralizar para alcançar quem vive fora das grandes metrópoles.
Viver mais com qualidade
Para Catarina Esteves, garantir o envelhecimento saudável de pessoas com VIH depende, também, da auscultação permanente dos portadores do vírus. “Defendo a 100% a utilização dos Patient-Reported Outcomes [resultados de saúde reportados pelos doentes, em tradução livre], porque não há maior especialista do que o paciente VIH”, afiança. Em Portugal, algumas organizações comunitárias promovem estes questionários sobre qualidade de vida, assim como o Hospital de Cascais, que utiliza esta ferramenta para conhecer o “impacto dos cuidados de saúde, do tratamento e das limitações, sociais e outras, que sentem”. A prática ainda não é generalizada nem padronizada, mas é apontada pelos peritos como essencial para colocar o cidadão no centro do sistema de saúde e oferecer uma medicina verdadeiramente personalizada.
Até ao final da década, a ONUSIDA quer acabar com a epidemia no mundo. Resultados positivos na Europa
é o número central para quebrar a transmissão do vírus. O programa VIH/sida da Organização das Nações Unidas pede aos países que 95% das pessoas infetadas sejam diagnosticadas, que, destas, 95% adiram ao tratamento e que 95% com terapêutica antirretroviral tenham o vírus suprimido. A instituição estima que tenham sido contaminadas, em 2021, cerca de 1,5 milhões no mundo.
Estudo Entre os 27 Estados-membros, Portugal lidera com 95% a taxa de diagnóstico. A Finlândia e os Países Baixos são também exemplos de como os objetivos definidos pela ONUSIDA até 2030 podem ser alcançados. Segundo o “Health-related quality of life in people living with HIV”, publicado pelo Parlamento Europeu em novembro, estes dois territórios apresentam taxas de diagnóstico de 94% e 93%.
é a percentagem de pessoas diagnosticas com VIH em tratamento que, em território nacional, apresentam carga viral indetetável. Isto significa que não é possível transmitir a infeção a outros e que o vírus não está a multiplicar-se no organismo, o que permite manter níveis de saúde equilibrados. Este estado pode ser alcançado cerca de seis meses após o início do tratamento.
Estigma A pesquisa feita pelo Stigma Index 2021-2022 aponta que 22% dos inquiridos dizem ter sido vítimas de comportamentos discriminatórios em serviços de saúde nos 12 meses que antecederam o estudo. Catarina Esteves, enfermeira no Hospital de Cascais, defende ser preciso “mais formação” e lamenta estas situações.
óbitos registados entre a população que vivia com o vírus em Portugal, entre 2020 e 2021. A avaliação é do Programa Nacional para as Infeções Sexualmente Transmissíveis e Infeção pelo VIH, que sublinha que 24,5% destas mortes ocorreram mais de duas décadas após o diagnóstico. É uma “evolução positiva”.
NOVOS DESAFIOS
O Expresso — com o apoio das principais associações de doentes na área do VIH e da ViiV Healthcare — criou um projeto para pensar as principais prioridades políticas, médicas e sociais nesta área. Na base está um conselho de especialistas, que tem produzido recomendações e caminhos para melhorar as condições de trabalho dos profissionais de saúde e a qualidade de vida dos doentes.
Textos originalmente publicados no Expresso de 31 de março de 2023
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