Geração E

O acesso ao Ensino Superior está infiltrado com privilégio: a falácia da meritocracia como fórmula regente

O acesso ao Ensino Superior está infiltrado com privilégio: a falácia da meritocracia como fórmula regente

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

O peso da Educação não deve estar no estudante, mas sim no Estado. Ao dizer que a fonte de rendimento das faculdades para pagar aos professores e investigadores das universidades deve ter por base as propinas dos alunos e não ser uma das funções do Estado Português, parece que o Sr. Ministro Fernando Alexandre quer que Portugal deixe de ter alunos e passe a ter “clientes da Educação”

A retórica clara mas problemática de Fernando Alexandre, Ministro da Educação

No passado dia 2 de setembro, foi noticiado o futuro descongelamento das propinas, a começar no ano letivo de 2026/2027. Embora o aumento esperado possa parecer reduzido, pelo menos nas licenciaturas — passa de um teto máximo de 697€ para 710€ —, esta decisão abre caminho para uma maior desigualdade social, para além da simbologia inerente de descongelar o teto das propinas. Graças ao discurso do Ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre, em entrevista na Sic Notícias, facilmente percebemos o raciocínio perigoso em termos sociais que levou a esta decisão:

“Se reduzirmos as propinas, estamos a colocar toda a sociedade a pagar o ensino daqueles que tiveram o privilégio de frequentar o Ensino Superior, e isso é altamente regressivo. (...) Estamos num mundo muito competitivo e nós só vamos conseguir melhorar a nossa sociedade e transformar a nossa economia se nós conseguirmos ter universidades de excelência. Para termos universidade de excelência, elas têm de competir a nível internacional. E para competirem a nível internacional, elas têm de ter os recursos. De que recursos é que elas precisam? Para contratar os melhores professores, para contratar os melhores investigadores, elas não podem depender do Estado. (...) Se a propina que pode ser cobrada pelas instituições for limitada ou for diminuída, aquilo que financiará uma instituição de excelência é o quê? São os impostos dos portugueses, através de uma transferência do Orçamento do Estado?”

A resposta a esta pergunta seria: sim, mas avancemos. Esta retórica contorcida, embora clara no seu intuito, precisa de ser desmontada. Adianto que este tipo de discurso não é surpreendente, vindo de um homem doutorado em economia, que vê aparentemente tudo como capital. O ponto central aqui é que frequentar o Ensino Superior é um privilégio. Se olharmos para os modelos internacionais de educação dos Estados Unidos e de Inglaterra que implicam propinas altíssimas que endividam as pessoas durante largos anos da sua vida, não é difícil de perceber que tais modelos só vincam ainda mais as desigualdades sociais. É preciso nivelar as oportunidades, na busca de uma sociedade que nivela o acesso a oportunidades entre classes sociais. Antes de se preocupar com a possibilidade das universidades portuguesas conseguirem competir a nível internacional, se calhar, deveria primeiramente preocupar-se com o panorama dos estudantes portugueses que não conseguem prosseguir com os seus estudos por falta de privilégios económicos e sociais.

O Sr. Ministro da Educação esquece-se que deveria estar a centrar o seu discurso no direito social à educação e não no privilégio capital de o poder frequentar. É preciso saber fazer perguntas pertinentes para se alcançar respostas eficazes para a sociedade. Claro que, vivendo nós num mundo capitalista, é preciso gerir dinheiro, mas continuar com um percurso académico que só vinca ainda mais as desigualdades sociais não é um caminho que procura a equidade, é um abismo onde só quem tem dinheiro é que tem bilhete para passar a ponte para o outro lado.

O peso da Educação não deve estar no estudante, mas sim no Estado. Ao dizer que a fonte de rendimento das faculdades para pagar aos professores e investigadores das universidades deve ter por base as propinas dos alunos e não ser uma das funções do Estado Português, parece que o Sr. Ministro Fernando Alexandre quer que Portugal deixe de ter alunos e passe a ter “clientes da Educação”.

Ora, a verdade é que o privilégio de poder entrar no ensino superior e enveredar por uma carreira economicamente favorável é um autêntico privilégio com muitas camadas. Estas camadas podem ser explicadas de uma forma geral pela macro teoria social de Bourdieu que, embora com muitas falhas na sua fundamentação, demonstra como o sistema educacional pode potenciar ainda mais as desigualdades sociais, especialmente pelo contexto em que as pessoas cresceram. Em vez de prosseguir o meu discurso dissecando o pensamento de Bourdieu, passo a explicar em questões práticas alguns dos pontos fulcrais. Se for do interesse de quem me lê aprofundar os seus conhecimentos sobre a Teoria de Classe de Pierre Bourdieu, sugiro o artigo de Dylan Riley, de 2017, The Academic as Revolutionary; e o artigo recente de Maria Keil, publicado a 11 de abril de 2025, partindo da teoria de Bourdieu, aliando-a a uma investigação empírica, e consequente análise, intitulado “Climbing the academic ladder: how social class and habitus mediate academic careers.”

De pequenino se torce o privilégio: as diferentes realidades de poder entrar e frequentar o ensino superior

Numa primeira instância de mais fácil observação, percebemos que as rendas altas são um grande entrave para os estudantes que entraram em faculdades distantes da sua residência familiar. Como noticiado pelo Expresso,o preço dos quartos para estudantes subiu 33% em três anos. Consequentemente, há quem desista de estudar longe de casa. Ora, tendo em conta a centralização das faculdades mais privilegiadas nas cidades de Porto e Lisboa, encontramos aqui mais um obstáculo de desigualdade social entre quem consegue pagar uma vida estudantil nestas duas cidades e quem não tem capacidades económicas para isso. Atualmente, uma renda de um quarto em Lisboa ronda os 500€, podendo variar entre cerca de 400 e 600€, conforme a localização, tipologia e ganância do senhorio; e um quarto no Porto pode ultrapassar os 500€, mas situa-se habitualmente entre os 350€ e os 450€. Ainda dentro da questão do arrendamento, é importante referir que muitas propostas de alojamento são sem contrato ou recibo, o que não só afeta a estabilidade da situação habitacional da aluna ou aluno, como impede o seu acesso a apoios.

Além do privilégio de poder pagar uma renda, é importante referir outros por forma a pautar o panorama de desigualdade de oportunidades presente na sociedade:

  • Ser ou não ser trabalhador-estudante na licenciatura: ter de dividir o seu tempo entre faculdade e trabalho faz com que haja menos tempo para estudar e menos capacidade mental de foco. Não ter de trabalhar enquanto se estuda para sustentar os seus gastos é um privilégio.

  • Acesso a explicações fora da escola ou faculdade: há alunos e alunas que, quando confrontadas com dificuldades de aprendizagem podem recorrer a explicadores sem limite de investimento, enquanto outras pessoas não, ainda por cima se forem trabalhadoras-estudantes. Ora, o não acesso a explicações extra pode mesmo impedir que alunos com dificuldades financeiras não entrem no curso que desejavam e mais prestigiado em termos de potencialidades de emprego após término da licenciatura.

  • Pode escolher uma escola específica que prepare o aluno/a aluna para o ensino superior: a possibilidade de escolher escolas privadas que tenham mais disponibilidade para preparar melhor os alunos para o ensino superior pode influenciar muito.

  • Os hábitos culturais da família em que se nasce: crescer com amplas bibliotecas, acesso a informação legítima, crescer a frequentar espaços culturais com ampla oferta de qualidade, como teatro, concertos, colóquios, moldam muito o contexto e o contacto em que cada pessoa cresce e como consegue moldar a sua carreira. E, neste ponto, a teoria de Bourdieu não poupa um cêntimo de descrição do problema.

A falácia da meritocracia como fórmula regente

Ora, imaginemos que no mundo em que vivemos, tendo em mente o que foi referido no último ponto, de repente, a educação se tornava gratuita para toda a gente, desde a creche ao ensino superior. Será que essa única medida, sem ter em conta todas as camadas de privilégio da sociedade, chegaria para igualar o acesso a oportunidades de construção de uma carreira economicamente estável e confortável? De grosso modo, não, porque as desigualdades de base continuariam a não ser colmatadas: o diferente acesso a atividades culturais, os hábitos e as redes de contacto continuariam a ser diferenciadas entre as classes mais baixas e as mais altas. É por esta razão que é necessário analisar para lá da superfície e encontrar as perguntas de investigação eficientes de forma a alcançarmos uma maior equidade social.

Claro que é possível — embora se tratem de casos de exceção e não de regra — que através da educação, da observação e da proatividade, uma pessoa de classe média-baixa possa conseguir colmatar a falta de contexto familiar em que tivesse sido potenciado o acesso a hábitos culturais e a espaços de networking, no sentido de tentar chegar ao mesmo nível de oportunidades de alguém que cresceu numa família de classe média-alta. No entanto, garantidamente, é mais rápido chegar a Braga partindo do Porto com um BMW do que partindo do Algarve com um Fiat Punto. E é isto que faz da meritocracia uma falácia, porque os privilégios não estão a ser postos no cálculo do estatuto social.

Aproveito para deixar a nota de que vale a pena observar a investigação de Maria Keil, especialmente porque diferencia tipos de apoio que a família forneceu aos académicos do seu estudo — emocional, financeiro, aspiracional — e como isso influenciou a movimentação dos indivíduos entre classes sociais. Escusado dizer que quem nasceu com privilégios movimentou-se mais rapidamente para cima na escala de classes, em vez de se movimentar meramente na horizontal (ou seja, com um estatuto social semelhante, mas numa área de trabalho distinta).

Uma nota conclusiva: mudar a lente do capital para o humano

Dito isto, como resolver o problema da falta de equidade de oportunidades entre classes sociais? Garantidamente não é ao descongelar as propinas e a ver os estudantes universitários como “clientes do ensino superior”. É preciso pensar na questão de raiz.

Um sistema capitalista vê as pessoas meramente como capital, da mesma forma que um hospital privado, enquanto empresa, não vê pacientes, vê clientes. Se calhar, está na altura de ver as pessoas como pessoas e adaptar o capital às suas necessidades, em vez de formular estratégias em como elas o podem servir.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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