O Feminismo básico de pacote não basta, é preciso que seja Interseccional
Demasiadas vezes — e apenas uma vez já seria demais — as mulheres lésbicas não são contempladas em conversas sobre mulheres e a luta pelos seus direitos: são tornadas invisíveis, mesmo dentro da esfera da fala feminista. Abordam-se maioritariamente questões que comparam a falta de direitos para as mulheres com os privilégios do homem, numa discussão que contempla maioritariamente relações heterossexuais, e pouco sobre o Feminismo tendo em conta as mulheres lésbicas.
A verdade, é que o inimigo da Igualdade — ou do Feminismo — são as opressões contra as minorias de poder. É a opressão contra as mulheres, contra as limitações dos padrões de género binário tradicionais, contra a comunidade, contra as pessoas negras, contra pessoas com pouca capacidade económica, contra imigrantes, contra pessoas em regiões geográficas em guerra. Todas estas opressões se podem cruzar e potenciar uma maior desigualdade social. É da procura de quebrar com estas opressões cruzadas sistémicas e estruturais — na busca da equidade social — que nasce o Feminismo Interseccional. Este tema é abordado nos textos de Djamila Ribeiro, editados no seu livro, publicado em 2018, “Quem tem medo do Feminismo Negro?”, onde a autora fala como o Movimento Feminista tem de ter em contra não só questões sobre machismo como de racismo e de classe social, já que amplamente se cruzam. Além disso, explica cronologicamente como a visão interseccional do Feminismo já estava patente em textos de Bell Hooks e de Angela Davis, embora o termo só tenha sido cunhado em 1989 por Kimberlé Crenshaw, na sua tese de doutoramento:
“A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras.”
Djamila Ribeiro prossegue explicando como “pensar a interseccionalidade é perceber que não pode haver primazia de uma opressão sobre as outras e que é preciso romper com a estrutura. É pensar que raça, classe e gênero não podem ser categorias pensadas de forma isolada, porque são indissociáveis.” (pág. 122). A estas opressões, acrescenta-se a homofobia, transfobia e bifobia.
Por exemplo, é mais provável uma mulher negra lésbica sofrer mais preconceito social e violência sexual do que um homem branco heterossexual ou até de uma mulher branca lésbica. Não se trata de vitimizar ninguém, tratam-se de estatísticas. Dentro do tema dos privilégios e opressões, aconselho igualmente a leitura das crónicas de Roxane Gay do seu livro “Bad Feminist”, autora negra que cresceu com privilégios económicos, como ela própria refere.
Ora, desta forma, é possível ter privilégios e sofrer opressões ao mesmo tempo. No meu caso, sou uma mulher branca, cisgénero (identifico-me com o género que me foi atribuído à nascença tendo em conta os meus genitais) e financeiramente estável — três privilégios —, e também sou bissexual numa relação lésbica, o que me faz ser oprimida em certos contextos sociais, geográficos e políticos. Por isso, sendo agosto o mês da visibilidade lésbica, escrevo-vos no sentido de procurar mostrar como não basta que sejamos vistas, é preciso que haja a aceitação e a inclusão da realidade das mulheres lésbicas nos cenários pré-concebidos em conversas e discussões sobre a vida das mulheres. Dentro da esfera social que vivemos, há comentários que nunca deveriam ser tecidos a mulheres em relações lésbicas e que espelham o preconceito social existente. As mulheres lésbicas não vivem numa bolha à parte da sociedade, fazem parte dela. Assim sendo, a sua realidade deve ser tida em conta, num caminho de desconstrução de preconceito e desinformação. Caso haja dúvidas, fica aqui a explicação dos comentários desconfortáveis e desinformados feitos.
Não é “só uma piada” e não dói necessariamente menos porque “a intenção não foi má”
Arrisco-me a dizer que todas as mulheres em relações lésbicas já ouviram pelo menos algum comentário homofóbico desconfortável — não que os haja dentro da categoria de “confortável”, mas, a dada altura, já ouvimos tanta coisa que alguns já tentamos, tristemente, só ignorar. Aqui ficam alguns dos comentários mais comuns, com uma reflexão:
- “Quem é o homem da relação?”
A relação envolve duas mulheres e nenhum homem. Numa relação lésbica não há, literalmente, nenhum homem. Há uma ideia pré-estabelecida de papeis de género na sociedade, fazendo com que haja uma propensão a achar que, para um casal funcionar e se completar, as duas pessoas têm de encaixar de alguma forma nesses papeis, mesmo se forem do mesmo género. Há, ainda, a ideia que num casal de lésbicas há automaticamente uma que tem uma expressão de género mais masculina e outra não. Tanto pode acontecer, como não. Aliás, a própria comunidade lésbica tem diferentes categorizações conforme as características da mulher lésbica: por exemplo, femme (considerada com expressão de génerofeminina) e butch (considerada com expressão de género masculina), mas também existem outros como baby dyke, High Femme, Lipstick Lesbian, Soft Butch, Stone Butch, Sporty, Boi, etc. Estes rótulos servem para quem os quiser dentro da comunidade lésbica e os vir como úteis, como forma de pertença. Portanto, o facto de se achar que tem de haver uma pessoa que encaixa no papel de homem e outra na de uma mulher numa relação lésbica só mostra como a mente a sociedade no geral está programada segundo o conceito heteronormativo. Da mesma forma, a própria categorização dentro da comunidade tem como fonte de comparação os papeis de género tradicionais, mostrando um lado muito duro da sociedade: não há como fugir da existência de conceitos pré-concebidos de género binário criados para todas nós, pessoas vivas, mesmo antes de nascermos.
- “Isso é só uma fase.” Dizer a alguém bissexual — ou que achava que era heterossexual, mas descobriu que não — é desvalorizar a descoberta e a experiência romântica e sexual da pessoa a quem este comentário é dirigido. Quando se trata de pessoas bissexuais ou pansexuais — que, respetivamente, se podem sentir atraídas por homens e mulheres, ou por qualquer pessoa de qualquer género — a atração não é pautada tanto por fases mas por pessoas. Assim como uma pessoa hetero não se atrai por toda a gente do género oposto, nem tem sempre o mesmo “tipo” de pessoa por quem se atrai, quem é bissexual não se atrai necessariamente por um órgão sexual, atrai-se pela pessoa inteira.
- “Só és lésbica porque nunca estiveste com “um homem a sério” ou a versão mais bruta “és masé mal fodida”.”
Este tipo de comentário levanta várias questões importantes. A mais imediata é que nesta comunicação está implícito que o maior prazer sexual que uma mulher pode ter tem de vir de um homem. Sabemos, através de diversos estudos e vivências que tal não é real. Este tipo de pensamento advém de um conceito de relação sexual que centra a origem de prazer no pénis. Esta visão falocêntrica, mesmo dentro do contexto heterossexual, não podia estar mais desfasada dos factos já que, como sabemos, a fonte de prazer da mulher cis está, regra geral, intrinsecamente ligada ao clítoris, sendo que para atingir o orgasmo nem sequer é necessária a penetração. Embora esta possa ser muito prazerosa, já que a extensão interna do clítoris é muito maior do que a externa, para esta acontecer não é necessário um pénis, apenas algo que penetre, podendo ser dedos, outras partes do corpo, ou brinquedos sexuais. Além disso, contra factos não há argumentos:vários estudos, incluindo um com mais de 52 000 testemunhos de pessoas, chegaram à conclusão de que a taxa de relações sexuais em que as mulheres atingem o orgasmo é muito superior em relações lésbicas, quando comparadas com relações heterossexuais: cerca de 86% de mulheres lésbicas versus 65% das mulheres heterossexuais.
Mesmo assim, a crença errada de que uma mulher só é lésbica porque teve experiências sexuais fracas com homens é, na verdade, muito perigosa. Esta mesma crença que, levada ao extremo, potencia crimes de ódio como as violações chamadas de “violações corretivas”, ou, mais corretamente, “violações homofóbicas” ou “lesbofóbicas”. Tratam-se de violações de mulheres lésbicas, neste caso, de forma a submetê-las à heteronormatividade, sendo um crime homofóbico de extrema violência. O termo começou a ser usado após o crime de violação e homicídio de Eudy Simelane, em abril de 2008, em Joanesburgo. Os casos ocorridos de “violações lesbofóbicas” fazem-nos concluir que as mulheres lésbicas negras correm maior perigo do que as mulheres lésbicas brancas, trazendo o tema da opressão e do privilégio, mais uma vez, para cima da mesa de discussão.
- E quando a amiga heterossexual, cansada de más experiências de dating te diz, em forma de desabafo, “quem me dera ser lésbica”
Ora, por muito que este comentário possa vir de um lugar de frustração, também vem de um lugar de privilégio heterossexual. Uma mulher heterossexual que diga “quem me dera ser lésbica”, apenas porque o mercado de homens disponíveis está mau — e está mesmo, pelo que tenho percebido dos relatos das minhas amigas hetero — não está a ter em conta o desafio social que comporta estar numa relação lésbica. Numa relação heterossexual, a questão de apresentar o namorado à família pode causar ansiedade, mas não se compara a apresentar uma namorada. Dar as mãos na rua. Dar beijos na rua. Engravidar. Ter filhos e filhas. Manter uma relação com a família alargada sem preconceito agregado. Viajar — porque em muitos países ser-se gay e lésbica é mesmo crime e, em alguns locais, até punível com morte. Ir a reuniões de encarregados de educação. Jantares da empresa. Consultas de ginecologia. Enquanto estas questões são corriqueiras numa relação heterossexual, numa relação lésbica acrescencem uma camada de dificuldade.
Por isso, mulheres hetero, da próxima vez que tiverem vontade de dizer “quem me dera ser lésbica” só porque estão frustradas com as vossas experiências heterossexuais, tentem ter a empatia de se imaginarem no lugar de uma mulher lésbica que nasceu numa família conservadora e que quer apresentar a sua namorada que adora à família. Pensem nas mulheres lésbicas que foram violadas com o intuito de lhes “corrigirem” a sexualidade, como se ser lésbica tivesse algo de errado. Pensem nas pessoas que são perseguidas e assassinadas meramente por serem homossexuais. Talvez assim percebam o privilégio que é poder dizer, de tom leve e jocoso “quem me dera ser lésbica”.
Dito isto, estou muito feliz por ter a minha namorada na minha vida. Uma boa semana para toda a gente que até aqui leu.
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