Geração E

Videojogo “No Mercy”: A violação não pode ser um jogo, mas a indignação pode acabar com ele

Videojogo “No Mercy”: A violação não pode ser um jogo, mas a indignação pode acabar com ele

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

A empresa responsável pelo jogo afirma apenas ser um jogo inofensivo para o mundo real. Mas, se em vez de desfazermos a fantasia da violação a estamos a potenciar, será mesmo inofensivo haver um jogo como o “No Mercy”?

Infelizmente, não me faltariam temas para a crónica desta semana, visto que, nos últimos dias assistimos a um noticiário diário de desgraça misógina:

Todos estes acontecimentos demonstram algo em comum: uma misoginia estrutural, em que comportamentos nocivos são tolerados ou até potenciados entre grupos. Assim, o problema já existia antes do rapaz que alertou para a adulteração de bebidas ser esfaqueado, antes do militar violar e enviar o vídeo pelo Whatsapp, antes dos rapazes predadores irem para os fóruns, antes do ginecologista voltar a abusar e antes do jogo ser criado: a misoginia não aparece do nada, é alimentada.

Olhemos, esta semana, para a existência do jogo “No Mercy”.

Não é uma mera fantasia, é a concretização da cultura de violação num jogo

Toda a gente tem as suas fantasias sexuais, ou assim se espera, mas nenhuma delas deveria incluir violar alguém.

Tudo começa com a construção viril do padrão de género masculino, pré-concebido para os homens — isto não se trata de uma desculpa, mas de um enquadramento. Uma construção hegemónica e patriarcal que determina a superioridade masculina como nata e que, ao mesmo tempo, se torna numa prisão sobre o que é permitido e não permitido a um “homem a sério”: forte, corajoso, nunca vulnerável, que providencia para a família, heterossexual, sempre pronto para o sexo, que faz muito sexo, e para quem as mulheres são inferiores e propriedade sua, ambicioso. Ora, este padrão causa sempre frustração, porque é difícil de alcançar na sua totalidade, especialmente quando há fatores que não dependem da própria pessoa. Por exemplo, fazer muito sexo com mulheres está intrinsecamente ligado à disponibilidade sexual delas.

Muitos rapazes, quando frustrados por não terem parceiras sexuais ou pretendentes amorosas, encontram um sentimento de pertença em grupos Incel — homens involuntariamente celibatários —, que se revoltam contra as mulheres que os rejeitam. Podemos ver as possíveis consequências desse tipo de grupo na tão falada série “Adolescência” e em crimes reais, como o caso do homicídio em série do qual Elliot Roger foi culpado. Este jovem, considerado um “herói incel”, em 2014, assassinou 6 pessoas e feriu outras 14, antes de se suicidar com a arma do crime. Elliot fazia parte da comunidade Incel. Antes de se suicidar, o jovem enviou um documento onde contextualizava o crime, explicando como se havia focado na sororidade Alpha Phi: “o tipo de raparigas que eu sempre desejei mas que nunca tive oportunidade de ter” — citando o assassino.

Neste contexto nocivo de mulheres como propriedade, também cresce a fantasia e o crime de violação. Quando existe este tipo de fantasia, situada no campo da ‘cultura de violação’, é necessário desconstruir em contexto de terapia, de forma a criar uma noção saudável de envolvimento sexual. Em vez disso, há pessoas que potenciam a cultura de violação, como é o caso dos criadores e distribuidores do jogo “No Mercy”.

As mulheres não devem sexo a ninguém, em nenhum contexto. (Mesmo que sejam esposas de alguém, não devem sexo ao seu marido.) No entanto, o jogo “No Mercy”, criado pela Zerat Games, convidava os seus utilizadores a serem o “pior pesadelo das mulheres”, contendo elementos explícitios de violência sexual, com incesto, chantagem e violação. Este jogo estava disponível na Steam, uma das maiores lojas digitais de videojogos, incluindo na apresentação do jogo: “não aceite um não como resposta”.

A empresa responsável pelo jogo afirma apenas ser um jogo inofensivo para o mundo real. Mas, se em vez de desfazermos a fantasia da violação a estamos a potenciar, será mesmo inofensivo haver um jogo como o “No Mercy”? A meu ver, com um jogo assim, estamos antes a dizer que, se ninguém vir, se for escondido, se for só entre amigos num videojogo, não só é aceitável como esperado que se violem mulheres. Tudo isto me faz lembrar do alegado caso dos homens que violaram em grupo uma menor no Metaverso: será que não ser no mundo real faz com que seja aceitável? Não, não faz.

Na verdade, a mera existência deste jogo espelha a existência de uma sociedade misógina que vê as mulheres como propriedade. Pensemos nas diferentes camadas do problema:

  1. Um grupo de pessoas, provavelmente homens, juntou-se e pensou neste jogo;
  2. Um grupo de pessoas criou o jogo;
  3. Um grupo de pessoas validou-o e distribuiu-o;
  4. Várias pessoas em todo o mundo compraram o “No Mercy”, depois de ler a descrição e saber o conteúdo do jogo.

A violação não pode ser um jogo. A visão dos relacionamentos sexuais não pode ser contruída através da lente da cultura de violação. Não é uma questão de censura, mas antes uma questão de educação para a vida adulta e de como ver as mulheres. O jogo seria igualmente mau se convidasse os seus utilizadores a violarem homens.

Perante este panorama, muitas pessoas, organizações e meios de comunicação demonstraram indignação, nomeadamente a CIG (Comissão para a Igualdade de Género), em Portugal, e a NCOSE (Centro Nacional de Exploração Sexual dos Estados Unidos), o que resultou na retirada do jogo da plataforma Steam. No entanto, o jogo continua disponível noutras plataformas.

Não precisamos de mais propagação de ódio contra mulheres, não podemos continuar a potenciar uma cultura de violação. Já chegam as notícias reais, não precisamos de jogos que as espelhem. Precisamos de mais medidas de prevenção e de educação.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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