Estamos a assistir a um declínio do uso do preservativo, especialmente nos jovens. Consequentemente, tem havido maior incidência de ISTs. Na verdade, a descida do uso do preservativo não me surpreende, visto que a educação para a sexualidade está a ser alvo de um puritanismo nocivo para a saúde física e mental da população. Se há pudor em procurar proteção, é óbvio que as pessoas a procuram menos, mesmo que haja locais onde os preservativos são gratuitos. Neste sentido, é fulcral promover iniciativas que alertem no sentido de aumentar a prevenção da propagação e falta de diagnóstico e tratamento das ISTs.
Alerto para o facto de que a designação atual é IST — Infeções sexualmente transmissíveis — e não DST — Doenças sexualmente transmissíveis. Desta forma, não só temos uma designação mais correta em termos médicos como quebramos o estigma que existe contra ISTs. Contrair uma IST não é uma questão de vergonha, pode acontecer a qualquer pessoa sexualmente ativa. Importa que se previna, se teste e, sendo o caso, se trate, para que não haja consequências nocivas nem para a própria pessoa nem para as pessoas com quem se relacionou ou se relaciona sexualmente.
O uso do preservativo não é só um método de barreira anticoncecional, é um ato de cuidado de saúde.
Infelizmente, ainda há a ideia de ver o preservativo acima de tudo como uma prevenção para as gravidezes indesejadas, antes de se pensar na sua eficácia contra a propagação de ISTs. A maravilha do preservativo é que consegue fazer multitasking.
As principais ISTs são: Clamídia (Clamidiose genital), Condilomas anogenitais (causadas pelo vírus do HPV), Gonorreia, Hepatite B, Herpes genital, Micoplasmose genital, Tricomoníase, Sífilis e Síndrome da Imunodeficiência adquirida (SIDA, causada pelo vírus do VIH quando não tratado). A probabilidade maior ou menor de contrair ISTs varia das diferentes práticas sexuais praticadas. No entanto, havendo troca de fluídos e contacto de mucosas, o risco existe. O cuidado não deve ser descurado mesmo quando se fala de sexo oral, quando se está numa relação monogámica ou se tem relações sexuais lésbicas, como veremos mais à frente.
Quanto ao HPV, o vírus não se apresenta de uma só forma, sendo que há vários serotipos, ou seja, de grosso modo, há vários tipos de HPV, com grupos de serotipos com diferentes consequências de saúde. Embora avacina contra o HPV esteja incluída no Plano de Vacinação desde 2014, a sua proteção aumentou desde a sua primeira versão. Em janeiro de 2009, iniciou-se o processo de vacinação, destinada somente às mulheres (mesmo que os homens também fossem portadores) nascidas em 1992, 1993 e 1994. Esta vacina, a HPV4, protege contra quatro estirpes de HPV, dois dos quais os mais associados ao cancro do colo do útero — por isso mesmo, a vacinação foi disponibilizada às mulheres cis na pré-adolescência e adolescência, idealmente antes de iniciarem a atividade sexual. A vacina atual, a HPV9, confere proteção contra nove serotipos do vírus, aumentando a sua eficácia para 90% dos tipos de HPV associados ao cancro do colo do útero e outros cancros anogenitais (relativo ao ânus e órgãos sexuais). Todas as mulheres que nasceram antes de 1992 não tiveram acesso à vacinação gratuita, mas podem pedir a receita numa consulta de medicina geral e familiar ou de ginecologia, sendo que a têm de pagar a título pessoal. O valor ultrapassa os 100€, o que faz com que a proteção contra o HPV possa ser uma questão de privilégio económico. Para quem tomou a HPV4 e não a HPV9, pode igualmente pagar a nova versão a título privado, aumentanto a sua proteção contra o HPV.
Virando a página da proteção contra o HPV, os mais recentes estudos concluíram um aumento das ISTs, sendo que a Clamídia, a Gonorreia e a Sífilis predominam nos diagnósticos. Embora os dados afirmem que as mulheres são as mais atingidas, não nos podemos esquecer que são elas quem mais se testa. Assim, havendo mais mulheres do que homens a testarem-se, é natural que haja mais mulheres diagnosticadas. Tal acontece, porque a medicina está construída, ainda, de forma a que a responsabilidade anticoncecional recaia maioritariamente nas mulheres. Além disso,são elas que podem ter consequências mais graves a nível de saúde. Além disso, para uma mulher cis, é normal ir uma vez por ano fazer o papanicolau e ter mais espaço para fazer perguntas sobre a sua vida íntima (recomendo que levem uma lista de perguntas e as façam sem pudor) . Pergunto-me quantos homens fazem análises às ISTs pelo menos uma vez por ano.
Adianto que para fazer testes em pessoas com útero à Clamídia ou Gonorreia, o papanicolau não serve. Tem de ser feita um recolha de muco após, pelo menos, cinco dias sem menstruação e sem relações sexuais. Aquando o exame do Papanicolau, pode-se pedir para fazer igualmente um rastreio ao HPV. Quanto à sífilis, Hepatite B e VIH, o rastreio pode ser feito através do sangue. Atualmente, já se encontra disponível em Portugal o autoteste de VIH, cujainformação está disponível no site do SNS. Infelizmente, todos estes exames comportam um gasto considerável, quando feito a nível particular, e até um rasgo de sorte com o médico ou médica do SNS que nos calha (recebi vários relatos de pessoas a quem não lhes passaram alguns exames às ISTs, por não haver aparentemente comportamentos de risco ou sintomas. Claro que em todas as áreas de trabalho há bons e maus profissionais. Precisamos muito de médicos, mas também precisamos de evolução na forma como se trata os pacientes). Sendo que as consequências para a mulher com ISTs não tratadas podem ser a infertilidade e problemas na formação do feto quando grávidas, é natural que sejam elas quem mais se testa. Além disso, não ter sintomas não basta como diagnóstico, já que há pessoas que contraíram ISTs e não apresentam sintomas. Apenas com testes às ISTs é que sabemos se as temos ou não.
Embora a eficácia do preservativo não seja de 100% — especialmente contra o vírus do HPV — é o método mais eficaz que existe de proteção contra as ISTs. Mesmo assim, há muita gente, homens e mulheres, que não o querem usar por uma questão de conforto. Ora, à primeira vista, o que afirmo logo é que se o preservativo for usado corretamente, deixa de haver a ansiedade de engravidar ou de contrair ISTs, mesmo que os testes regulares sejam mesmo assim aconselhados. Assim, só por isso, o uso do preservativo pode apresentar-se como uma forma de conforto. Sobre a questão do desconforto no uso de preservativo, a sexóloga Vânia Beliz tem uma abordagem muito prática e ainda pouco abordada: o uso do preservativo deve ser treinado na masturbação. Se não for treinado, é natural que haja algum desconforto quando se começa a usar. Inclusive, hoje em dia, há um cardápio imenso de preservativos que podem ajudar a colmatar questões de performance e prazer: preservativos retardantes, para prolongar a penetração; que aquecem; com texturas; com diferentes comprimentos, espessuras e diâmetros; com extra lubrificação e até com sabores. Dito isto, não deveríamos antes ver o preservativo como um aliado numa vida sexual empoderada, de prazer e tranquilidade, em vez de o ver como um entrave?
O “acho que não tenho nada”, o “mas tu tomas a pílula” e o “já estou na menopausa” entram num bar e saem com ISTs
A ideia falocêntrica de penetração ligada à definição generalizada de relação sexual não nos limita somente a nível mental, comportamental e de prazer sexual, como pode significar um risco para a saúde. Além disso, aliada a esta ideia limitativa, temos a visão do preservativo somente como um método anticoncecional. Por consequência, há vários cenários que podem fazer parte nesta falta de proteção contra as ISTs:
- Há pessoas assintomáticas, mas portadoras de ISTs, que acham que não têm nenhuma infeção, baseando-se meramente no facto de parecer tudo bem a nível visual. Este tipo de comportamento, que pode ter por base a falta de informação ou o descuido consciente, é denotável quando a expressão “acho que não tenho nada” é utilizada. Amplamente utilizada por homens heterossexuais descuidados que não se testam, mas “acham” que não têm nada. “Achar” não é diagnóstico, é preciso testar.
- A falha do uso de preservativo no sexo oral, que também pode transmitir ISTs. No caso de sexo oral em pessoas com pénis, recomenda-se o uso de preservativo externo, sendo que existem no mercado preservativos com sabores. Quanto a sexo oral em pessoas com vulva, recomenda-se o uso de dental dam. É possível recriar o efeito de um dental dam com um preservativo para pénis: corta-se a ponta e faz-se um corte longitudinal, formando um retângulo. (Podem escolher fazer sexo oral sem preservativo, se ambos/as se testarem devidamente e estiverem numa relação monogámica).
- Pessoas com infertilidade, na menopausa ou ainda não férteis (meninas que ainda não são menstruadas) muitas vezes aventuram-se em relações sexuais, com ou sem penetração, mas com contacto das mucosas, que podem resultar em ISTs.
Além destes cenários, há outro que é relevante mencionar, já que é raramente posto em cima da mesa.
A prevenção contra as ISTs para além do sexo penetrativo heterossexual
Graças à vasta campanha dos anos 90 contra o VIH, o uso de preservativo na comunidade gay tornou-se um assunto amplamente falado. Não é por acaso que a comunidade gay é da que mais se testa. No entanto, fala-se muito pouco de ISTs no contexto de relacionamentos lésbicos, até em consulta médica.
Graças à ideia falocêntrica de penetração peniana ligada à definição de relação sexual, há um geral descuido no discurso quando se fala de relações lésbicas (relações WLW — women loving women). Para além de poder haver sexo sem penetração com contacto de mucosas — que por si só já comporta risco de contágio de ISTs e não é reservado às relações WLW — há outras atividades que são relação sexual que comportam troca de fluídos, como penetração com mãos e brinquedos sexuais. Ora, também aqui pode entrar o uso de preservativos: quando se partilham brinquedos sexuais penetrativos entre as duas parceiras.
Para além de muita gente nem sequer pensar neste contexto de relação sexual, há ainda muitos profissionais de saúde pouco habituados a esta realidade. A título de exemplo pessoal, quando pedi a receita da vacina HPV9 a um médico de medicina geral, a reação dele foi perguntar-me “mas a Clara tem estado em relações com mulheres”. Eu respondi-lhe enumerando as diferentes formas de contrair HPV. O médico começa a pensar em voz alta, chegando à conclusão de que eu tinha razão. Foi um momento muito caricato porque ele estava mesmo interessado, agradecendo-me o meu tempo. Louvei-lhe a empatia, mas ao mesmo tempo fiquei triste com o facto de que a medicina ainda não está preparada para toda a gente. O privilégio heterossexual não existe só a nível social, também existe a nível da saúde.
Nota conclusiva
Mais vale jogarmos pelo seguro, do que seguramente nos pormos em risco. O preservativo não só protege contra ISTs e gravidezes indesejadas, como pode ser um aliado no prazer sexual. O preservativo não é um entrave sexual, mas antes uma benção.
Para além da prevenção, é necessário fazer testes regulares e tratar possíveis ISTs. Como indica o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças: é necessário Testar, Tratar e Prevenir.
Este artigo é uma mera introdução às questões das ISTs e saúde sexual, que pretendo elaborar de forma mais detalhada no futuro.