Geração E

Um trauma tem data de validade?

Um trauma tem data de validade?

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Se aceitamos sem grande contestação que os traumas infantis podem ter implicações na vida adulta, por que razão a sociedade em geral questiona a validade de acusações de assédio e violação sexual por já terem passado 5, 10, 17, 20 anos? Então, um trauma tem ou não data de validade?

Há muitos padrões de comportamento que advêm de traumas na infância, seja por algo a que fomos submetidos, ou por observação, e consequente mimetização, de padrões de pessoas com as quais crescemos. Isto é algo comumente aceite e real. Estes traumas não têm um limite de validade, pois, não sendo tratados, podem-nos afetar a vida toda.

Tendo em conta este dado, pergunto: se aceitamos sem grande contestação que os traumas infantis podem ter implicações na vida adulta, por que razão a sociedade em geral questiona a validade de acusações de assédio e violação sexual por terem passado 5, 10, 17, 20 anos? Então, um trauma tem ou não data de validade?

Se por um lado são as mulheres que são maioritariamente as vítimas, por outro, mesmo quando são os homens que são assediados sexualmente, os agressores são na grande, grande, maioria, homens. (Claro que há casos em que são elas que são as agressoras, mas estamos a falar de números.) “Das 30488 denúncias de violência doméstica feitas no ano passado, a esmagadora maioria das vítimas eram raparigas ou mulheres, já 80% dos denunciados eram homens.” (Paula Cosme Pinto, Expresso, 11/2023). Para acumular ainda mais perigo, desde o princípio do ano já foram assassinadas 25 mulheres e registadas mais 38 tentativas de homicídio, sendo que estes crimes acontecem maioritariamente em relações de intimidade.

Ora, quando se noticiam casos de tentativa de homicídio e de assassinato efetivo entre casal, muitas vezes são catalogados de “crimes passionais”. No entanto, não há “crimes passionais”: ou é crime, ou é paixão. Quem ama, não mata. Tão simples quanto isso. Se matou, não era amor, era outra coisa.

É neste contexto de mistura entre amor e intimidade que a apresentação de queixa se torna ainda mais velada.

“Como posso fazer queixa de alguém que amo?”

“E se ele souber que eu fiz queixa? A violência pode piorar.”

“Mas ele só é assim quando bebe. Ele precisa de ajuda.”

Sobre este contexto, uma técnica do Projeto (des)Igualdades, que dá apoio a vítimas de violência doméstica e a menores ao seu cargo, que interviu no passado dia 25 de novembro, numa conversa sobre violência contra mulheres no Município de Grândola, explicou que, muitas vezes, as vítimas de violência doméstica não vão pedir ajuda para si, mas antes para o agressor. Ainda, comentou como, muitas vezes, são os agressores que as conduzem até à esquadra para retirarem a queixa…

É verdade que os agressores precisam de ajuda, mas não cabe à vítima sofrer “por amor”. Acima de tudo, não deve caber à vítima de violência doméstica ajudar o agressor: uma vítima que cuida do seu agressor não se cuida a ela mesma. Precisam os dois de ajuda, cada um com a sua ajuda.

Revitimização nas esquadras

O primeiro grande entrave no processo é ganhar coragem para fazer queixa. Aqui, entra o medo: medo de como as forças policiais vão reagir à queixa; ter de descrever e relembrar o trauma; e o medo de represálias, no caso de haver uma relação de intimidade com o agressor.

A verdade é que nem todos os polícias estão preparados para estes casos. Já recebi, inclusive, testemunhos de mulheres que foram fazer queixa de assédio e foram assediadas na esquadra por agentes da PSP, ou que questionaram a validade da queixa; e ainda a quem questionaram se “tinha a certeza que queria fazer queixa”. Claro que há bons e maus profissionais em todo o lado, mas numa esquadra isto nunca deveria acontecer. Além disso, a população comum, como eu, não tem noção dos direitos que tem neste contexto. Só soube este ano que uma mulher, para apresentar queixa de assédio ou violação sexual, pode chegar à esquadra e pedir para ser atendida por uma mulher polícia. Os agentes da PSP com quem falei sobre este assunto, disseram, também, que é importante pedir para deixar declarações para memória futura. O que é isto? Basicamente, para efeitos de registo com a memória fresca, a vítima deixa uma declaração da descrição do que aconteceu. Isto comporta dois grandes benefícios: não ter de estar sempre a revisitar o trauma, passo por passo; e não acontecer contar pormenores de forma diferente — a memória falha a toda a gente, o que muitas vezes é usado contra a vítima. Ainda, se souberem de alguém que está a ser vítima de violência, podem fazer queixa, mesmo não sendo vocês as próprias vítimas, com a possibilidade do anonimato.

Tudo isto são direitos contemplados na lei, mas aos quais muitas vezes não temos acesso, porque não sabemos que existem.

Mesmo com estes entraves, a queixa é necessária e urgente em casos de assédio e violação sexual. Se eles sabem que fazem o que querem e continuam impunes, nada os impede de agredirem cada vez mais, e mais pessoas.

O sexo não é uma zona cinzenta e uma violação não acontece só com um pénis

Há uma ideia básica de que uma violação é quando alguém é penetrada/o por um pénis sem consentimento verbal. Ora, o espectro de uma violação não é limitado assim, mas uma coisa é certa: sexo não é uma zona cinzenta. Um “não” que é forçado até virar “sim” não é consentimento. Uma pessoa inconsciente nunca pode dar consentimento, seja a dormir ou muito embriagada ou drogada. Tirar o preservativo a meio sem consentimento, não é correto em lado nenhum. Lubrificação corporal não é por si só consentimento: muitas vezes há líbido e consentimento, mas não há lubrificação natural suficiente; e a lubrificação natural continua a ser uma resposta física e não um “sim”. Sexo oral forçado é violação. Uma violação continua a sê-lo se for inserido outro objeto, ou parte do corpo (mãos, boca, etc), sem consentimento. Por estas razões, procurar vestígios de esperma e penetração forçada numa vagina não são provas suficientes para saber se houve violação ou não.

Além disso, só porque ele é teu marido, ou ela tua esposa, não quer dizer que haja um consentimento base para fazer sexo. Sexo forçado em casamento ou namoro é violação. Ainda, ninguém deve sexo a ninguém, por isso, não te sintas obrigada/o a dar consentimento a alguém só porque é teu marido, esposa, namorado/a. Para além de ter de haver consentimento, é necessário que haja vontade de iniciar uma relação sexual. Se notarem algum desconforto no vosso parceiro ou na vossa parceira, perguntem se estão bem, se estão confortáveis. E se ouvirem um “não”, respeitem-o, mesmo que vos “apeteça muito”. Ninguém deve ser escrava/a sexual das vontades de outra pessoa. Isso é desumano e literalmente crime.

Quando o acusado é uma figura pública com poder

Esta problemática da acusação de assédio e violação sexual cresce de tamanho quando a pessoa acusada é uma figura pública ou com algum poder económico. Nestes casos, a vítima sabe que vai haver uma exposição pública e, consequentemente, uma revitimização nas redes sociais e na sociedade em geral. Ora, sabendo de antemão que esta é uma realidade, duvido mesmo, mesmo, muito que alguém se sujeitasse ao escrutínio público sem ter realmente passado por uma situação traumática. Mesmo assim, o machismo funciona tão bem que põe a maior parte das pessoas fica automaticamente contra as mulheres que apresentam queixa de assédio e violação sexual, sem noção total do contexto, até haver provas de que foi vítima; e a defender a figura pública acusada, até provas de que realmente é culpada. Como é que isto é justo? Ele, acusado, é sempre o protegido, porque “é tão bom profissional”, “orgulho nacional” e ela, vítima, é sempre a galdéria em busca de dinheiro.

Na vida corriqueira de pessoas afastadas da esfera pública, este raciocínio acontece muitas vezes com conhecidos, vizinhos, familiares. Quantas e quantas vezes vimos pessoas a falar sobre os vizinhos que mataram as mulheres como “mas ele era tão bom vizinho, não fazia mal a ninguém”? Quantas e quantas vezes desvalorizamos realidades por causa de conhecermos as pessoas na nossa vida pessoal?

Para pensarmos sobre isto, proponho uma premissa hipotética: aposto que há por aí um assassino em série que faz ótimos assados. Se alguém só o conhecer pelos assados, vai falar bem sobre ele, por muito que ele seja um assassino em série. Não podemos julgar as pessoas por inteiro quando só conhecemos uma parte. Não é pelos assados serem tão bons que ele passa a ser menos assassino.

Por causa do crescente à-vontade em apresentar queixa, e ainda bem, muitos homens me dizem que vivem com medo de serem acusados de assédio ou violência sexual. Com todo o respeito, não cabe às mulheres preocuparem-se com isso, eles que se preocupem. Vivem com medo? Criem grupos de apoio como aqueles que tantas e tantas vítimas mulheres têm de recorrer para lidarem com os seus traumas de violência sexual. Porque, infelizmente, continuam a ser as vítimas de violência doméstica a terem de sair de casa, a serem segregadas da sua rotina, das suas famílias, em prol da segurança delas próprias e dos filhos. As pessoas segregadas até prova de inocência deveriam ser as acusadas e não as alegadas vítimas. A questão do poder económico agrava a situação, já que, estatisticamente, são as mulheres que têm rendimentos mais precários.

Notas conclusivas

O trauma não tem data de validade. Não tem. Podem dizer o que quiserem, mas não tem.

A solução não é atirar a responsabilidade para a educação das crianças, é educar toda a gente. A próxima geração a ser adulta, a tomar decisões, a votar, não aprende no ar. Não podemos usar o mote “as crianças são o futuro” para desresponsabilizar as pessoas que agora são adultas: toda a gente é passível de evolução, se a desejar.

Espero ver o dia em que, ao invés da sociedade geral duvidar à partida da vítima que faz a queixa, duvide primeiramente da pessoa acusada de violência. Aí teremos uma sociedade que procura antes de mais proteger a vítima, ao invés de querer ilibar o agressor.

Até lá, continuamos na luta.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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