Hamas, mas / Pales-TINA
É uma das mais sensíveis e irresolúveis questões do último século, mas o atual debate público sobre o conflito mimetiza a estética do mais mundano bate-boca de internet. Não é política, é criação de conteúdo
Humorista
É uma das mais sensíveis e irresolúveis questões do último século, mas o atual debate público sobre o conflito mimetiza a estética do mais mundano bate-boca de internet. Não é política, é criação de conteúdo
Há pessoas que querem salvar o Mundo. Dentro das que querem salvar o Mundo, há as que querem salvar o Mundo com ressalvas. Condeno a violência, mas. Habitualmente, não há originalidade na escolha da conjunção adversativa - é sempre o “mas”, provavelmente porque é uma palavra pequena, que talvez se possa tornar inaudível, passando assim despercebida. Ocultariam melhor a dissonância cognitiva se diversificassem o léxico de oposição. “Sou contra a carnificina, contudo”; “matar é mau, porém” ou “inocentes devem ser poupados, todavia”.
Se algumas reações aos acontecimentos desta semana estiveram ligadas a um uso problemático de conjunções, outras têm origem num problema na compreensão da antonímia. Especificamente, aquela que ocorre entre “ocupado” e “ocupante”. Em fevereiro de 2022, a Comissão Europeia concordava com a importância dessa relação semântica. Hoje, armazena esse princípio no congelador.
Há pessoas que, receando passar a ideia de que estão a defender uma ocupação, legitimam um grupo terrorista, reacionário e racista que chacina inocentes. Com medo de parecer estar em cima do muro, saltam para cima de uma Toyota Hilux. Tornam-se, assim, militantes do Hamas, mas.
E há pessoas que se convencem que estão do lado da moral e da paz por se posicionarem contra um bárbaro ataque, ao mesmo tempo em que alegam não ter alternativa senão estar do lado do regime que, esta mesma segunda-feira, descreveu a população que enclausura como “animais humanos”. Um sistema que a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch classificam de apartheid será o único viável? Sim, segundo os partidários da solução Pales-TINA.
É uma das mais sensíveis e irresolúveis questões do último século, mas o atual debate público sobre o conflito mimetiza a estética do mais mundano bate-boca de internet. Ao longo de um fim-de-semana, mantivemos exactamente o mesmo tom, saltando de microanálises - jovens da capital causaram breve atraso a automobilistas na rua de São Bento - para a macroanálises - parece que há desaguisados ali para os lados do Crescente Fértil. Não é política, é criação de conteúdo. Se entra na ordem do dia um tema complexo, é hora de recorrer a maniqueísmos de defesa.
É uma leviandade só permitida a quem tem o privilégio de combater num campo de batalha mais seguro. O das colunas de opinião dos comentadores profissionais que pretendem escrever o texto definitivo sobre o tema; dos canais informativos que tornam a análise da atualidade num interminável e repetitivo DJ set do género trance e dos despiques entre membros da realeza da bolha politico-jornalística e uns bots no Twitter. Daqui a uma semana, abandonamos esta frente e partimos para outra. No teatro de operações da tudologia, todas as guerras são a dos seis dias.
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