“Dançar é como voar com os pés na terra”: como é que se pode estudar dança em Portugal? Quatro bailarinas relatam os desafios da área
Yanis Ourabah - Getty Images
No Dia Mundial da Dança, o Expresso procurou perceber quais são as opções para quem quer entrar no Ensino Superior na área da dança em Portugal. Como é que funcionam as candidaturas? Qual o plano de estudos? E estes cursos, correspondem às expectativas dos alunos que escolheram a arte do movimento do corpo como futuro profissional?
Para celebrar o dia Mundial da Dança, o Expresso falou com quatro bailarinas que estudam ou ensinam nas únicas duas escolas superiores que oferecem uma licenciatura de dança em Portugal.
Ao serem questionadas se seguir dança neste país é uma decisão hercúlea, as quatro reações começaram exatamente da mesma forma: uma ligeira e baixa única gargalhada, como de quem sabe que é realmente uma questão pertinente, mas gostariam que não o fosse: “implica muita dedicação” ,“é corajoso”, “é uma escolha de paixão” e “é difícil”.
Foram as definições utilizadas por cada uma das bailarinas que irão ser apresentadas por ordem, ao longo do texto, a mesma ordem das frases que espelham a dificuldade da arte profissional da dança.
Ainda assim, no decorrer das várias conversas, não se notou qualquer momento de arrependimento relativamente à escolha que fizeram.
Madalena Xavier é professora e foi aluna da Escola Superior de Dança (ESD)
Filipe Ferreira
Em bicos de pés na Escola Superior de Dança
A Professora
De sapatilhas de pontas ou pés descalços, com um bonito tutu repleto de brilhantes ou uns calções largos e um top de treino. Madalena Xavier era muito nova quando descobriu que queria ser bailarina. A decisão “foi natural, eu estava sempre a dançar”.
“A dança é a linguagem escondida da alma”. Madalena cita Martha Graham, uma das mais brilhantes e revolucionárias bailarinas de todos os tempos, para tentar explicar ao Expresso o que significa a dança para si, diz ser “uma prática artística centrada no corpo e no movimento”.
Ao admitir que o seu significado para a dança varia conforme os dias, faz a inevitável ligação da arte da dança às emoções, citando desta vez Wayne McGregor, exímio coreografo: “a dança através da coreografia é uma forma de pensamento físico”.
Madalena Xavier formou-se na Escola de Dança do Conservatório Nacional, a única escola em Portugal com ensino artístico especializado em dança, a par com o ensino integrado da formação geral, desde o 2.º ciclo até ao último ano do ensino secundário.
Depois seguiu para a Escola Superior de Dança. Trabalhou como bailarina, colaborou com coreógrafos e em projetos de artes performativas, pensou a dança, investigou a dança.
Neste momento é subdiretora e professora na Escola Superior de Dança, uma profissão que diz dar-lhe “a oportunidade diária de trabalhar diretamente para a dança e pela dança […] e de desafiar, estimular e apoiar os futuros profissionais da área.”
A Escola Superior de Dança integra o Instituto Politécnico de Lisboa e oferece àqueles que querem seguir esta arte uma licenciatura em dança, duas opções de mestrado (Criação Coreográfica e Práticas Profissionais ou em Ensino de Dança) e um doutoramento em Artes Performativas e da Imagem em Movimento.
Segundo Madalena Xavier, os alunos que procuram estudar na Escola Superior de Dança, querem ser intérpretes, coreógrafos ou professores. Mas há também muitos profissionais que procuram a escola em mestrado com o intuito de aprofundar o seu conhecimento técnico, artístico e de reflexão.
A ESD é conhecida, entre as conversas dentro e fora de estúdio, por ser uma escola que dá muita importância à componente prática, característica que acaba por chamar muitos alunos a candidatar-se.
Ao longo do ano fazem muitas apresentações, para ter o maior contacto possível com o público. Madalena Xavier diz ao Expresso: "[em] 2022 fizemos cerca de 100 apresentações entre aulas abertas, espetáculos ou criações de alunos.”
Mas afinal como se prepara uma candidatura à Escola Superior de Dança? Para além dos já conhecidos requisitos para efetuar uma candidatura a qualquer que seja a instituição de ensino superior, os inspirastes a alunos na ESD têm de passar por uma audição prática.
Madalena explica que “a audição tem um pouco de técnica de dança clássica e dança contemporânea. Depois tem uma componente de resposta criativa, mais ligada a um processo de improvisação em tempo real”, provas que são desenvolvidas em grupos de 10 ou 15 pessoas.
A prova termina com um solo que deve ser preparado previamente pelo aluno, que pode ser mais estruturado ou improvisado. “Só entra quem tiver positiva nas provas práticas, mas temos um perfil bastante heterogéneo de alunos aceites. O ideal é ter alguma formação em dança”, acrescenta a professora.
Ao explicar que dá aulas há muitos anos na escola, por isso já conheceu inúmeros alunos, diz que grande parte segue o percurso da dança, seja como intérprete, coreografo ou professor. E depois, há quem opte por ir tirar outro curso superior, mas diz que “vão ser sempre profissionais distintos ou singulares, pelo facto de terem passado por esta escola e pela formação em dança.”
São Castro é aluna da Escola Superior de Dança
António M. Cabrita
A aluna
São Castro (nome artístico), é um exemplo de uma aluna da ESD que escolheu dedicar a sua vida à dança.
Foi aluna da licenciatura há cerca de 20 anos e regressou agora à escola para tirar um mestrado em Criação Coreográfica e Práticas Profissionais.
Começou pela ginástica rítmica, ainda muito nova, que, explica, lhe deu “muitos recursos em termos físicos”, para mais tarde adaptar o seu corpo à dança. E só chegou mais tarde, aos 18 anos, a altura de decisão quanto ao seguimento da sua vida estudantil.
Pensou em educação física, porque sentia que seja qual fosse a decisão, “tinha de continuar em movimento”. Explica ao Expresso que não se recorda quem foi, mas alguém lhe disse “porque não tentas dança? É algo que já reparamos que é muito natural em ti, és muito expressiva fisicamente, então talvez seja uma boa saída”.
E assim fez. Começou por tirar um curso profissional de três anos na escola Ballet Teatro, no Porto, e mais tarde rumou a Lisboa, em 1998, para integrar a licenciatura.
Não dúvida ao afirmar que foram anos cruciais na sua evolução como bailarina, mas diz que a formação “é um acumular de etapas”. Na ESD teve oportunidade de aperfeiçoar técnicas e metodologias, “assim como aprendizagens e experiências na própria criação coreográfica”.
Destaca a oportunidade de ter contacto com coreógrafos e profissionais da dança nacional e internacional. E da importância e organização das várias cadeiras, tenham sido elas teóricas ou práticas.
Com o término da sua licenciatura, diz que começou a andar “de nenúfar em nenúfar”, mas sempre em terras portuguesas, entre companhias, parcerias com grandes coreógrafos, projetos coletivos e criações próprias.
Apesar de considerar que a dança é uma vida “dura”, pela alto nível de esforço e dedicação que contrastam com os escassos apoios e investimentos, diz ser “muito gratificante a questão do contacto com o público. Ter uma oportunidade de tocar aquelas pessoas de alguma forma.”
Já como bailarina profissional, voltou em bicos de pés para a Escola Superior de Dança para tirar o mestrado em Criação Coreográfica e Práticas Profissionais, com o objetivo de “dedicar-me mais ao pensamento do que propriamente à prática [...] perceber como funciona a dança no meu corpo e até sobre a minha própria prática artística enquanto criadora”.
Diz que a escola mudou de lugar, atualizou a sua oferta de cadeiras, mas que o espírito persiste. Há vinte anos começou a dizer que, para ela, a dança “é como voar com os pés na terra”, e São também persiste, tal como a escola, nesse mesmo espírito de voar com os pés na terra.
Margarida Moura, professora na Faculdade de Motricidade Humana (FMH) tem um percurso mais ligado à "dança na comunidade"
A heterogénea arte da dança na Faculdade de Motricidade Humana
A professora
Margarida Moura, atualmente professora na Faculdade de Motricidade Humana - que pertence à Universidade de Lisboa - considera-se “uma pessoa normalíssima com um percurso de dança na comunidade”, porque sempre esteve mais ligada às danças sociais e tradicionais portuguesas. Em mais nova, fazia questão de integrar todo e qualquer projeto de escola ou grupo de dança que surgiam durante a sua infância e adolescência.
Escolheu seguir para a licenciatura em Educação Física, do antigo ISEF, atual FMH, onde tinha como opção a dança, mais especificamente folclore. Dedicou a sua tese de mestrado e doutoramento à área da dança e a partir daí saiu à procura das peças que faltavam para começar a construir o seu caminho como bailarina profissional, passando muitos anos como intérprete na Companhia de Dança Popular da Universidade Técnica de Lisboa.
Nos dias de hoje, é professora na Faculdade de Motricidade Humana, onde leciona diversas disciplinas, como as de técnicas de dança: Danças e Coreografias Tradicionais Portuguesas e Metodologias do Ensino da Dança.
Explica que “através da dança, podemos conectar-nos com a parte mais artística da sua natureza e forma, porque trabalhamos em grupo, porque colaboramos, porque criamos, porque participamos, porque fruímos” e acrescenta ainda que, como professora, “é muito interessante ver como é que os estudantes começam o curso e até onde é que eles chegam no final de um semestre, de um ano ou do próprio curso.”
Clarifica que a Faculdade de Motricidade Humana não tem como objetivo formar bailarinos, mas sim profissionais com intervenção em dança na comunidade nos contextos, artístico, educativo, lúdico e inclusivo.
Os alunos terminam a licenciatura com competências para desempenharem as profissões de professores, coreógrafos, bailarinos, animadores ou investigadores em dança.
Mas para conseguirem entrar, além das habituais provas de ingresso e de uma média mínima de candidatura de 9,5 valores, os ansiosos alunos têm de passar por uma prova prática que tem dois momentos. No primeiro, os alunos participam numa aula de dança que combina diversos elementos técnicos e no segundo momento, serão avaliadas as capacidades criativas e a aptidão para trabalho colaborativo através de uma oficina de movimento.
Com estes exercícios, a professora explica que pretendem perceber “se é um corpo que pode ser trabalhado, se é multivariado, moldável e adaptável às várias abordagens desenvolvidas no curso”.
Margarida sublinha que o plano de estudo tem uma forte e consistente carga teórica e científica, mas também alguma carga prática, que no âmbito dos estudos artísticos e por vontade dos estudantes poderia ser maior.
Segundo a professora, o perfil de aluno que se candidata à licenciatura em dança, ambiciona dançar, conhecer melhor o seu corpo e as diferentes abordagens da dança. Outros estudantes destacam que foram recomendados por ex-alunos e atuais licenciados em dança pela FMH.
“Nós temos ex-alunos a dar aulas pelo país que recomendam a escola aos seus alunos, e quando estes se tornam professores, também eles recomendam esta licenciatura. Por isso, temos várias gerações que passaram pelo mesmo professor na FMH e eu acho isso delicioso e gratificante, um excelente e muito positivo feedback quanto à qualidade do curso”, partilha em tom de satisfação.
O contacto com o público em espetáculos é promovido no âmbito de várias disciplinas, sejam como espetadores, em visitas de estudo, com caráter performativo ou a convite de várias entidades.
Atualmente e com o objetivo de criação de pontes entre a comunidade e a FMH acontece também o “encontro de danças com tradição”, onde os alunos apresentam “os produtos coreográficos feitos no âmbito das danças tradicionais portuguesas e internacionais e onde grupos da comunidade são convidados a participar.”
Margarida Moura considera como estruturante pensar, vivenciar, estudar, investigar e divulgar a dança, ideias que tenta passar diariamente aos seus estudantes, como Beatriz Ortega.
Beatriz Ortega, dançarina e antiga aluna da FMH
Luiz Guilherme Pires
A aluna
Beatriz Ortega é aluna finalista na licenciatura em dança da Faculdade de Motricidade Humana. Ao falar com o Expresso, explica que a dança a acompanhou desde muito pequena. Passou pelo ballet, dança do ventre, contemporâneo e hip-hop. Diz que as aulas lhe dão “sanidade mental”.
A decisão de seguir dança profissionalmente chegou aos 27 anos, com a candidatura à atual licenciatura que frequenta. Não se via e não se vê como bailarina de palco, por isso é que demorou mais tempo a seguir o rumo profissional, e escolheu a FMH por ser um curso mais abrangente dentro da área da dança.
Queria ser professora, e já o é, desde o início deste ano na Oeiras Dance Academy, em ballet e dança contemporânea para os mais novos. Foi por isso que procurou a licenciatura, para ganhar “mais ferramentas”. Sente que o grande leque de formação que a Faculdade oferece, corresponde às necessidades de quem se candidata à escola.
Durante a conversa destacou um trabalho, na área da pedagogia da dança, no qual os alunos tinham de construir uma aula de início ao fim, da forma mais descritiva possível, “foi muito frustrante, porque foi um trabalho muito intenso e pormenorizado. Mas sinto que me deu ferramentas imprescindíveis enquanto professora”.
Na opinião própria de Beatriz Ortega, não lhe faz muita falta uma maior quantidade de apresentações ao público, já que não se vê como “bailarina de palco”, mas, explica, “muita gente da minha turma, aliás a maior parte, sente essa falta.”
Só a entristece por não ter tido a oportunidade de aproveitar as novas cadeiras de estilos como danças urbanas ou sevilhanas, que integraram o leque de unidades curriculares na reformulação do curso, que aconteceu a meio da sua licenciatura.
Mas diz que o curso serve as suas expectativas e que oferece aos alunos “uma grande visão sobre aquilo que é a área da dança, desde a produção de eventos até à parte mais de composição e de movimento.”
Define-se como uma pessoa muito emotiva e admite utilizar a dança como uma ajuda a lidar com o resto da sua vida, onde tem a possibilidade de exprimir todas as suas emoções através do corpo.
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