Há um gigante a correr no Marquês — pelo caminho deixa cravos que traçam um rumo de liberdade

Como está crescida, a democracia portuguesa. Neste retrato, tem seis metros de altura, veste-se e expressa-se como quer. A sua roupa é de todos, de tudo um pouco, e não ostenta cor senão aquele vermelhão que leva no colo. Corporalmente, os movimentos são de corrida: Mas será que foge, ou persegue? Corre pela liberdade, “sempre”. É Bruno Gonçalves, de nome artístico Confeere, quem pensou e fez nascer a obra, escolhendo agora o advérbio que lhe dá uma linha de tempo que não termina. Mas não será arriscado o pressupor de um inexistente fim?
Nas entrelinhas, a resposta subentende um risco maior na escolha de não o fazer: “Se a liberdade não for constantemente falada...”. Caberá, nas reticências que deixa ecoar, o esquecimento? “Não digo tanto, mas as camadas mais jovens podem não ter a consciência daquilo que foi”. Entenda-se “daquilo” o 25 de abril de 1974. E entenda-se por “consciência”, aquela que faz com que Confeere veja e oiça, todos os dias, uma luta que ocorreu na mesma calçada em que pisa, mas num tempo que ainda não era o seu. “Sem esse dia, eu não estaria a fazer o que faço hoje”, reflete.
E o que faz é arte – o que pressupõe do ser livre –, que abana as bolhas de realidade individual através de subtis chamadas de atenção. Na primeira pessoa do plural, assume: “Há coisas que nem sempre existiram e ainda assim tomamos como garantidas” – é isso que com esta peça quer combater.
Identifica dois exemplos: a liberdade de “dizer” e a liberdade de “vestir”. Pegou nessa segunda para ilustrar – sem cor - a peça da instalação que inaugura nas celebrações em que se assinalam 49 anos da revolução, e se prolonga até ao início do mês de maio. Não mostra cor, nem cara, mas há um rasgo de esperança inscrito nos seus olhos destapados: “O olhar é em frente”. Por baixo dos têxteis reciclados que vestem a figura – sua assinatura enquanto artista -, estão todos os que se quiserem juntar. “O importante não é perceber quem luta - é a luta em si”.
Um ramo de memória, transportada em cravos, acompanha a corrida. É o único elemento de identificação que, pelo chão do Marquês de Pombal, em Lisboa, vai traçando um caminho em modo convite, transcrito naquelas que são pétalas de liberdade. “É como o passar de um testemunho, que veio de uma luta dos nossos pais, dos nossos avós”, continua o artista plástico, “porque a luta pela liberdade não é um ato de individualismo”.
Contas “rápidas” e por alto, construir algo “deste tamanho”, conta Confeere, exigiria, mesmo trabalhando dia e noite, um espaço temporal de perto de um mês. “Mas considero que é preciso respirar, afastarmo-nos das peças, para quando voltarmos termos uma leitura diferente”.
Exemplo disso é o “esboço muito básico no papel” que, rapidamente, ganhou o adjetivo “delicado” por necessitar de um encontro com um movimento “orgânico” - o certo. Depois de sessões fotográficas em que o artista serviu, ao mesmo tempo, de modelo, percebeu que era necessário mais. Saiu da imagem estática para passar a ocupar vídeos reais - onde todos os maneirismos, gestos e posses pudessem ser captadas.
Estudados os pormenores dos ângulos humanos, começaria a matemática: esculpir a estrutura em metal que viria dar “sustento” e “durabilidade” àquela figura de seis metros de altura. “Depois, é Freestyle”. Subindo e descendo entre andaimes e escadotes, “como nas obras”, aplica os têxteis reciclados. “Vou usando um pouco de tudo para ter texturas diferentes, sejam calças, t-shirts ou casacos” – o seu stock é quase inesgotável e o próprio admite não conseguir dar vazão a tanto.
Mas antes de ter “muitos sacos cheios, daqueles grandes”, quando decidiu trocar os acrílicos para começar a pintar as suas obras com roupa, roubava toalhas à mãe – “coisas da cozinha”.
E à semelhança da personagem, que de sua passa a ser “de todos”, Confeere também corre - autointitula-se de street runner – mas a sua procura, dentro da liberdade que diz ter, é a do conhecimento. “Correr é um fragmento daquilo que eu faço. Seja pelas ruas em Portugal ou fora”. Pelo caminho, depois de grafiter, tornou-se tatuador, mas agora diz estar cada vez mais perto de uma passagem completa para artista plástico. “É o que me move, onde sinto que me consigo destacar”, conta acrescentando, entre rasgados sorrisos: “É muito mais desafiante fazer uma figura humana de tamanho gigante”.
Antes desta, houve uma outra, apelidada de “Reality Blocker”, sob o propósito de “acordar para a realidade” uma sociedade fragmentada pela distância mental potenciada pelas tecnologias. Em “Correr pela liberdade, sempre. 25 de abril, sempre” a chamada para a realidade é outra, e é disso que retira prazer: “Ver a reação das pessoas, chamando a atenção para certas coisas mundanas, do dia a dia”.
Mas na sua própria luta dentro do trabalho que exerce, vai espelhando a sociedade nas suas diversas esferas tendo na raiz dos seus trabalhos a cultura urbana. “Transportando os subúrbios para a cidade” – foi assim que sempre viveu, correndo, em passeios de comboio, de um lado ao outro.
Agora corre, com as suas instalações, que espaçadamente e ao seu tempo serão divulgadas, até à exposição final no fechar da cortina do ano. Na bitola, o lançamento de um álbum: “Gosto de me apresentar ao público como um músico”. Estas instalações – cada uma com um propósito que Confeere não quer ainda “desvendar” – são, por isso, lançadas como singles. “É o bom de fazer as coisas com tempo”.
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