Geração E

Há um gigante a correr no Marquês — pelo caminho deixa cravos que traçam um rumo de liberdade

"Correr pela liberdade, sempre. 25 de abril, sempre"
"Correr pela liberdade, sempre. 25 de abril, sempre"
Tomycorneo
Aconteceu “como acontece nas obras” - não fosse esta uma obra, mas de arte. O artista plástico Confeere, subindo e descendo entre andaimes e escadotes, edificou seis metros de um gigante sem cara no Marquês de Pombal, em Lisboa. Na mão, segura um ramo de cravos cujas pétalas vão caindo com o vento, enquanto traçam um caminho comum: o da liberdade

Como está crescida, a democracia portuguesa. Neste retrato, tem seis metros de altura, veste-se e expressa-se como quer. A sua roupa é de todos, de tudo um pouco, e não ostenta cor senão aquele vermelhão que leva no colo. Corporalmente, os movimentos são de corrida: Mas será que foge, ou persegue? Corre pela liberdade, “sempre”. É Bruno Gonçalves, de nome artístico Confeere, quem pensou e fez nascer a obra, escolhendo agora o advérbio que lhe dá uma linha de tempo que não termina. Mas não será arriscado o pressupor de um inexistente fim?

Nas entrelinhas, a resposta subentende um risco maior na escolha de não o fazer: “Se a liberdade não for constantemente falada...”. Caberá, nas reticências que deixa ecoar, o esquecimento? “Não digo tanto, mas as camadas mais jovens podem não ter a consciência daquilo que foi”. Entenda-se “daquilo” o 25 de abril de 1974. E entenda-se por “consciência”, aquela que faz com que Confeere veja e oiça, todos os dias, uma luta que ocorreu na mesma calçada em que pisa, mas num tempo que ainda não era o seu. “Sem esse dia, eu não estaria a fazer o que faço hoje”, reflete.

E o que faz é arte – o que pressupõe do ser livre –, que abana as bolhas de realidade individual através de subtis chamadas de atenção. Na primeira pessoa do plural, assume: “Há coisas que nem sempre existiram e ainda assim tomamos como garantidas” – é isso que com esta peça quer combater.

Identifica dois exemplos: a liberdade de “dizer” e a liberdade de “vestir”. Pegou nessa segunda para ilustrar – sem cor - a peça da instalação que inaugura nas celebrações em que se assinalam 49 anos da revolução, e se prolonga até ao início do mês de maio. Não mostra cor, nem cara, mas há um rasgo de esperança inscrito nos seus olhos destapados: “O olhar é em frente”. Por baixo dos têxteis reciclados que vestem a figura – sua assinatura enquanto artista -, estão todos os que se quiserem juntar. “O importante não é perceber quem luta - é a luta em si”.

Um ramo de memória, transportada em cravos, acompanha a corrida. É o único elemento de identificação que, pelo chão do Marquês de Pombal, em Lisboa, vai traçando um caminho em modo convite, transcrito naquelas que são pétalas de liberdade. “É como o passar de um testemunho, que veio de uma luta dos nossos pais, dos nossos avós”, continua o artista plástico, “porque a luta pela liberdade não é um ato de individualismo”.

Do “esboço básico” aos seis metros de altura em “freestyle”

Contas “rápidas” e por alto, construir algo “deste tamanho”, conta Confeere, exigiria, mesmo trabalhando dia e noite, um espaço temporal de perto de um mês. “Mas considero que é preciso respirar, afastarmo-nos das peças, para quando voltarmos termos uma leitura diferente”.

Exemplo disso é o “esboço muito básico no papel” que, rapidamente, ganhou o adjetivo “delicado” por necessitar de um encontro com um movimento “orgânico” - o certo. Depois de sessões fotográficas em que o artista serviu, ao mesmo tempo, de modelo, percebeu que era necessário mais. Saiu da imagem estática para passar a ocupar vídeos reais - onde todos os maneirismos, gestos e posses pudessem ser captadas.

Estudados os pormenores dos ângulos humanos, começaria a matemática: esculpir a estrutura em metal que viria dar “sustento” e “durabilidade” àquela figura de seis metros de altura. “Depois, é Freestyle”. Subindo e descendo entre andaimes e escadotes, “como nas obras”, aplica os têxteis reciclados. “Vou usando um pouco de tudo para ter texturas diferentes, sejam calças, t-shirts ou casacos” – o seu stock é quase inesgotável e o próprio admite não conseguir dar vazão a tanto.

Mas antes de ter “muitos sacos cheios, daqueles grandes”, quando decidiu trocar os acrílicos para começar a pintar as suas obras com roupa, roubava toalhas à mãe – “coisas da cozinha”.

E à semelhança da personagem, que de sua passa a ser “de todos”, Confeere também corre - autointitula-se de street runner – mas a sua procura, dentro da liberdade que diz ter, é a do conhecimento. “Correr é um fragmento daquilo que eu faço. Seja pelas ruas em Portugal ou fora”. Pelo caminho, depois de grafiter, tornou-se tatuador, mas agora diz estar cada vez mais perto de uma passagem completa para artista plástico. “É o que me move, onde sinto que me consigo destacar”, conta acrescentando, entre rasgados sorrisos: “É muito mais desafiante fazer uma figura humana de tamanho gigante”.

Tomycorneo

Antes desta, houve uma outra, apelidada de “Reality Blocker”, sob o propósito de “acordar para a realidade” uma sociedade fragmentada pela distância mental potenciada pelas tecnologias. Em “Correr pela liberdade, sempre. 25 de abril, sempre” a chamada para a realidade é outra, e é disso que retira prazer: “Ver a reação das pessoas, chamando a atenção para certas coisas mundanas, do dia a dia”.

Mas na sua própria luta dentro do trabalho que exerce, vai espelhando a sociedade nas suas diversas esferas tendo na raiz dos seus trabalhos a cultura urbana. “Transportando os subúrbios para a cidade” – foi assim que sempre viveu, correndo, em passeios de comboio, de um lado ao outro.

Agora corre, com as suas instalações, que espaçadamente e ao seu tempo serão divulgadas, até à exposição final no fechar da cortina do ano. Na bitola, o lançamento de um álbum: “Gosto de me apresentar ao público como um músico”. Estas instalações – cada uma com um propósito que Confeere não quer ainda “desvendar” – são, por isso, lançadas como singles. “É o bom de fazer as coisas com tempo”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mortigaodelgado@gmail.com

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