No lugar do coração, pulsam os cravos: o 25 de Abril que tem quase meio século, mas é eternamente jovem
José Fernandes
A liberdade celebra 49 anos e, para a festa, convidou uma juventude que, por não esquecer o que “aconteceu no passado”, celebra um presente longe do seu “estado perfeito”. A perspetiva é a de um futuro menos “assustador”. De cravo entre dentes, os jovens vão dançando ao som de um 25 de Abril que também é seu
Entre as curvilíneas sete colinas lisboetas, o sol irradia sobre a calçada. É um dia quente, durante o qual ecoam calorosos sorrisos, exaltados de vontade. Escrevem no ar e respiram liberdade -mas qual? “A de poder estar aqui hoje”. Quem responde, depois de interromper uma dança de cravo entre dentes, é Teresa Gomes, uma jovem de 18 anos. “Aqui”, nas comemorações de um 25 de abril que, antes de ser seu, teve de ser de outros. “Hoje” sente-se livre.
Está ciente de que não sabe viver de outra forma, o que chega a ser de um “assustador” tal que lhe desembrulha o medo. Confessa que olhava para o passado recente como “longínquo no tempo e no espaço”. Afinal, continua, “não é bem assim”, o que lhe dá razões para participar numa luta que, além de considerar a necessidade de ser constante, diz ser também sua geração: “A juventude não esqueceu o que aconteceu no passado. E não vai esquecer”, garante.
Como não esquecer o que nunca se viveu? Porque o viveram outros, que transportam agora na memória uma liberdade que conquistaram. “Já nascemos livres, mas os meus avós não. Nem os meus pais”. Quem fala agora é Ricardo Jorge, um estudante de engenharia civil com 20 anos. Ao lado dos pés, pousa um skate que não usou para descer a grande Avenida da Liberdade. Mas há quem o faça – não fosse também a circulação um direito. Exercendo-o, miúdos e graúdos escolhem locomoção a quatro rodas, e vão descendo a grande avenida de skate nos pés e cravo nas mãos. O desfile é das pessoas que, em fila, dançam ao som do que vão proclamando entre cantorias e tambores.
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Mais cedo, na hora de ponta do sol e a poucos minutos da residência oficial do primeiro-ministro abrir as portas a quem passa, também o fazia um grupo organizado de jovens. Ali estavam, a dar música às gerações de braço dado, que formavam uma fila da qual não se via o fim. Sobre o alcatrão quente, sorriam alto num cumprimento ao sol. Estavam 25ºC, mas a sua dança coreografada não cedeu. Convidavam as pessoas a participar, incentivando às palmas, aos gritos e ao batucar nos instrumentos de percussão que carregavam ao pescoço. São livres, mas querem sê-lo com outros. Tanto que, terminada essa sessão de abertura, misturaram-se com aqueles que começavam a espalhar-se nos jardins. Não tardaram a encher.
E cheios estão de cravos, cuja cor roubou a atenção do verde da relva aparada. “É um símbolo de paz”, diz Alice Cajada, uma jovem de 16 anos. Ao seu lado, Margarida Salvador, um ano mais velha, trazia essa paz colhida do jardim – como tantos outros antes dela o fizeram. Usava-a agora na roupa, combinando com o vermelho que já vestia. Estava lá com um propósito, que explica na segunda pessoa do plural. “Temos esta instalação, que consiste numa tela de reflexões”. Nela ficaram expostos os desabafos de quem, ao passar, decidiu escrever sobre a liberdade e o seu sentido mais amplo, abraçando diferentes leituras.
A liberdade de beijar: “Beijo quem quero”. A liberdade de ser: “Sermos mais próprios”. A liberdade de vestir: “Posso vestir-me como quiser”.
“Poder posso, mas não me sinto livre para o fazer”, diz agora Sofia Palombini, de 18 anos. “Ninguém me impede de usar uma saia curta, mas tenho medo das consequências dessa escolha, pela forma como me podem tratar”. Celebra a liberdade, de cravo na mão – e sobre o qual nada sabia até à data -, mas há onde não se sinta livre.
Inscrito na tela, lê-se ainda: “Liberdade é tudo”. Mas há um todo que falta conquistar – e essa é a luta dos jovens.
A liberdade de expressão e o “choque de ideias” que divide
Ricardo Jorge considera que cada vez há “mais opiniões” e isso provoca “divisões” – será essa uma consequência direta da liberdade de expressão? Alice Cajada volta a intervir: “Se a liberdade de um magoa, retira liberdade ao outro”.
“Há muito choque de ideias” atira agora, e corroborando sem saber, António Marques. Também tem 16 anos, mas ao invés de passear pelo desfile ou pelos jardins, escolheu os corredores da casa da democracia. O Parlamento esteve aberto a quem o quis visitar na tarde desta terça-feira. Fala deste choque de ideias com alguma circunstância - não tivessem sido os arredores do Parlamento, durante a manhã, inundados por manifestações várias, de diferentes, e até opostos, propósitos.
Isabel Martins, de 19 anos, que também optou por vasculhar aquelas que descreve como “as salas mais escondidas” do Parlamento, confessa desacreditar na existência plena de liberdade de expressão e, usando a cultura do cancelamento, justifica: “Acho um bocado grave cancelares outra pessoa por qualquer coisa em vez de recorreres ao diálogo.”
Senta-se, ao lado de Nelson Duarte, de 20 anos, na cadeira número 61 da Sala do Senado, pouco depois de, juntos, julgarem aquela outra sala, a das sessões, que “não é tão grande quanto parece” e onde as ideias, como dizia António Marques, chocam.
Num meio suspiro, Isabel Martins não hesita num “sim”, quando questionada sobre se a luta da liberdade ainda é sua. Simultânea e paradoxalmente não a sabe caracterizar: “Não penso muito nisso, o que em parte é bom.” Mas vê no 25 de Abril um “lembrete” para um futuro que não quer que repita o “chocante” do passado. “Só podemos pensar num, sabendo o outro”, acrescenta o amigo.
Também Nelson olha para esta data como uma luta que deve ser constantemente alimentada em prol de um amanhã que categoriza como sendo uma “incógnita” – em parte, responsabiliza a liberdade económica que diz não chegar à sua geração.
Mas de volta ao fim da linha do desfile, nos Restauradores, Ricardo Jorge retira-se do verbo “lutar” - tão gasto: “ A liberdade que estamos a celebrar é algo que já tenho.” Teresa Gomes, em contraponto, diz: “Não nos encontramos num estado perfeito e imutável da sociedade. Muitas das causas pelas quais lutamos agora não existiam há 50 anos - exemplo disso é o clima. E, nos próximos, vão surgir novas questões pelas quais vamos continuar a lutar.”
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