Geração E

Tudo às claras: Feminismo

Tudo às claras: Feminismo

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Acredito que muita gente não é feminista porque o Feminismo põe em causa o equilíbrio assumido da sociedade como estanque e arrumado em dois géneros. Se toda a gente tiver o seu papel com base no seu género, temos uma noção ilusória de arrumação

Na última segunda-feira de cada mês, responderei a uma seleção das perguntas colocadas pelas pessoas que me seguem no Instagram. Este mês de março temos como tema “Feminismo”, não fosse este o mês do Dia da Mulher.

Repare-se que as respostas dadas estão escritas num tom casual, de miga para miga, e respeitam as palavras usadas nas perguntas por quem as fez.

Como explicar que o Feminismo é igualdade, e não a versão feminina de machismo?

Tem sido o meu desafio e o da comunidade toda. Não se quer a supremacia feminina (sobre isto, lê o livro “The Power”, também mencionado abaixo), mas sim a igualdade de oportunidades, tendo em conta as diferenças biológicas. Costumo dizer que é como se os homens estivessem no nível 5 de direitos, em termos de efetividade na prática, e as mulheres no nível 3. Nós, feministas, só queremos que as mulheres, e todas as minorias de poder, sejam elevadas ao nível 5 também.

Tanta confusão houve com a questão que levantas, que se criou uma nova palavra para “a procura da supremacia feminina”: Femismo. Honestamente, acho mesmo triste que tenha de haver um neologismo por causa da falta de interesse em procurar saber o que o Feminismo é antes de o criticar. Desta assumpção salvo pessoas que não têm o privilégio de ter acesso a um motor de busca ou a livros da área.

Como educar para o Feminismo nas escolas?

A verdade é que existem manuais oficiais de cidadania e igualdade de género da CIG para a prática docente e cultura escolar, dentro do projeto Guiões de Educação Género e Cidadania: uma estratégia para o mainstreaming de género no sistema educativo”. O que é preciso garantir é que estes manuais são usados e que a abordagem da igualdade de género continue a ser permitida nas escolas. Ainda, seria essencial, a meu ver, que a disciplina de Cidadania tivesse mais horas, para que todos os assuntos fossem abordados com a profundidade suficiente.

A CIG — Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género — é um organismo nacional e um serviço da administração direta do Estado, “responsável pela execução das políticas públicas no âmbito da cidadania e da promoção e defesa da igualdade de género.” (Ver mais sobre a CIG aqui).

Como um homem pode apoiar o Feminismo?

A meu ver, um homem pode não só apoiar o Feminismo como também ser feminista. O machismo, que é contra o que o Feminismo luta, afeta também os homens, fazendo com que reprimam os seus sentimentos; tenham necessidade de ser machões junto dos amigos; tenham pudor em reportar casos de violência sexual; tenham uma taxa mais alta de suicídio; medo de falar sobre impotência ou meros casos naturais de perda de ereção, etc. Podes ler mais sobre isto na minha crónica “Machismo: também a causa de morte de muitos homens”. Por esta razão, acredito que a luta feminista é, acima de luta, uma luta contra todas as vertentes do machismo.

Porque não são todas as pessoas feministas?

Acredito que muita gente não é feminista porque o Feminismo põe em causa o equilíbrio assumido da sociedade como estanque e arrumado em dois géneros. Se toda a gente tiver o seu papel com base no seu género, temos uma noção ilusória de arrumação. Se tu, como pessoa individual, vires a sociedade arrumadinha e essa arrumação te apaziguar, é natural que te enfureças com uma pessoa que te venha desarrumar a dispensa toda. Porque tudo estava tão organizado. Se te sentares um pouco com a pessoa revolucionária de dispensas, facilmente perceberás que afinal a organização era só aparente, que não é possível categorizar pessoas como quem separa massa de arroz. E, mesmo assim, há imensos tipos de cada um.

Por outro lado, menos inocente, acredito que uma pessoa culta que não seja feminista também pode acontecer porque lucra diretamente com isso, social e, ou, economicamente. Por exemplo, um homem que não questiona a razão pela qual a colega de trabalho dele, com um cargo igual ao seu, ganha menos que ele; um chefe que continua a perguntar a mulheres em entrevistas de emprego se elas pretendem engravidar.

Homem solteiro é sinónimo de garanhão, mulher solteira é sinónimo de que lhe falta qualquer coisa. O que pensas sobre isto?

Acredito que tem a ver com o duplo padrão social construído conforme a binomia limitadora de género. A generalidade das pessoas continua a assumir que o intuito maior de vida de uma mulher deve ser constituir família. Como se, à nascença, só por nasceres com vulva, te escrevessem um oráculo de felicidade na certidão de nascimento: “nasceu com vulva, portanto, só será plenamente feliz se constituir família”. Aqui, importariam dois afluentes de raciocínio: desafiar a criação de uma noção mais ampla do que é “constituir família”; e o desafio social de desassociar genital de género.

Quanto aos homens, por serem tidos como animais incapacitados de controlar os seus instintos sexuais (mas depois considerados ótimos para altos cargos de decisão só por nascerem com um pénis, ora aí está mais um oráculo), são rotulados como garanhões enquanto solteiros que andam a explorar a sua sexualidade.

Importante é desconstruir estes rótulos e tomar como natural homens que queiram constituir família e mulheres que não queiram. Mais ainda, podemos passar por várias fases durante a nossa vida, fases as quais não são necessariamente ditadas pela idade cronológica. Não há um livro único de receitas fixas para a felicidade.

Qual é a tua posição acerca dos homens terem direito de abdicar da licença de parentalidade?

Legalmente, os homens pais têm dias obrigatórios de licença de paternidade. A lei portuguesa até está bastante bem nesse sentido. Podes consultar todas as vertentes da mesma aqui, incluindo até o caso de assistência a neto. A grande questão aqui é a efetividade da partilha de tarefas e gestão de um sistema familiar de apoio dentro de casa entre casal.

Para além das licenças, é importante referir a necessidade de garantir que as empresas não dispensem mulheres por estarem grávidas ou por terem sido mães. Ainda em 2022, empresas dispensaram três grávidas e novas mães por dia.

Eu achar mal uma mulher meter-se com um homem casado faz de mim menos feminista?

Para comentar, vou assumir que a mulher se envolveu de livre vontade, sem coerção profissional, e que sabia que o homem era casado e que o casamento não era aberto.

Assim, neste caso, quem não está a ser feminista é a mulher que se envolveu com um homem casado, sabendo que ele era casado; e o homem casado que não está a respeitar o compromisso que tem com a esposa. Feminismo não é necessariamente apoiar mulheres só porque são mulheres, mas antes, neste contexto, não apoiar homens acima de mulheres só porque são homens. Nesse caso de traição numa relação monogâmica, tanto o homem casado como a mulher que se envolveu com ele estão a errar.

Nesse contexto, tu apenas serias menos feminista se só condenasses moralmente a mulher envolvida com o homem casado, mas não o homem.

Maiores exemplos e influências do Feminismo, de preferência europeu?

Podes indicar livros sobre Feminismo?

Juntei as duas questões porque as minhas maiores referências também são literárias, não fosse eu uma nerd no coração. As referências são maioritariamente portuguesas e britânicas, porque desde a adolescência vou sozinha visitar a minha irmã que vive em Londres e dou por mim mergulhada em livros na livraria da Tate Modern.

Fiz uma seleção ainda vasta, sem ordem, para que possas escolher conforme os assuntos que te puxem mais. O único que é mesmo um romance, não no sentido romântico, claro, é o “The Power”.

Cláudia Lucas Chéu, portuguesa, dramaturga, escritora,

  • A Mulher Sapiens” — coletânea de textos da autora que tocam vários pontos do que é ser mulher, nos seus variadíssimos contextos, sexual, profissional, familiar, etc.

Helena Magalhães, portuguesa, escritora, editora da chancela Aurora e responsável pelo fenómeno nacional Book Gang,

  • Ferozes” — a autora escreve sobre situações autobiográficas, da forma mais honesta e crua, que tem tanto de grito de raiva como de abraço de comunidade entre mulheres.

Paula Cosme Pinto, ativista, jornalista durante 10 anos, agora na equipa criativa d’O Apartamento

Caroline Criado Perez, britânica, nascida no Brasil, jornalista e ativista,

  • Mulheres Invisíveis — escreve como o mundo está feito para os Homens, com dados científicos e de todo o mundo.

Dra. Nina Brochmann e Dra. Ellen Støkken Dahl, norueguesas, médicas e autoras do blog ”Underlivet”

  • Viva a Vagina! — desmistificam questões tabu sobre vaginas e vulvas.

Rachel Anne Williams, escritora, americana,

Shon Faye, britânica, escritora, editora, jornalista,

  • The Transgender Issue — sobre a realidade de se ser trans, sem papas na língua. (Ainda não li, mas recomendaram-me vivamente)

Roxane Gay, americana, escritora, editora e professora

  • “Bad Feminist— um dos livros que mais me marcou. Uma série de crónicas que intersectam de forma clara e audaz noções de privilégio de feminismo.

Pauline Harmange, francesa, escritora e ativista,

  • "Detesto os Homens" — não se deixem enganar pelo título polémico, até porque Harmange é casada com um homem (assunto também comentado por ela). A autora escreve sobre a sua caminhada como feminista de uma forma que faz pensar. Não é uma questão de concordar com tudo, mas de ter acesso à opinião válida da autora.

Chidera Eggerue, britânica, conhecida por The Sumflower

  • What a time to be alone — como estares sozinha pode nem sequer ser um problema, mas uma solução, no sentido em que nos podemos aperceber do nosso próprio valor, de forma a construirmos relações profícuas.

(Dame) Mary Beard, britânica, académica,

  • Women & Power — como as mulheres foram silenciadas ao longo dos tempos, desde a Antiguidade. A edição mais recente inclui um comentário final biográfico e marcante da autora.

Naomi Alderman, britânica, escritora,

  • The Power — uma distopia desconcertante que mostra como a solução é a igualdade e não a supremacia masculina ou feminina.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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