Geração E

30% de música portuguesa nas rádios nacionais é um mínimo olímpico num país com o mínimo de amor próprio e poucos atletas olímpicos

30% de música portuguesa nas rádios nacionais é um mínimo olímpico num país com o mínimo de amor próprio e poucos atletas olímpicos

Benjamim

Escritor de canções, intérprete e produtor

Se a música portuguesa não passar na rádio nacional, onde é que vai passar? Sonho com um país que não está permanentemente à venda e que reclama o direito de existir, com uma cultura com voz própria.

Recentemente voltou o velho debate sobre as quotas de música portuguesa na rádio. De forma espontânea, a partir de uma conversa num grupo de whatsapp de algumas das melhores cantoras e escritoras de canções da nossa praça, a mensagem começou a espalhar-se rapidamente. A Márcia mandou-me uma mensagem que aparentemente já vinha da Luísa Sobral, com o apoio da Capicua, do André Tentugal e dos Best Youth. Confiando nos nossos amigos e colegas, lá fomos todos partilhando o hashtag #queromaismúsicaportuguesa.

Entretanto, até sinto que já perdi alguns anos de vida a ler comentários deixados por pessoas anónimas nas notícias sobre o assunto, nas redes sociais ou nas caixas dos jornais. Alguns dos comentários fazem uma pessoa questionar se vale realmente a pena lutar por um país melhor ou se o melhor mesmo é desistir. Nunca fui bom a desistir, portanto vou responder.

Primeiro que tudo, quero afirmar que, pessoalmente, não me posso queixar da atenção que algumas rádios têm dado à minha música e que isto não é sobre mim. Em segundo lugar, reconhecer que há muitas estações de rádio, tanto públicas como privadas, que apostam na música portuguesa. Isto não é uma iniciativa contra nenhuma rádio específica, é sobre como vamos pensar num futuro sustentável para uma indústria em franco crescimento, que emprega muita gente (que ao contrário do que leio regularmente, não quer viver de subsídios, mas sim do seu trabalho), que esgota salas como nunca se viu noutro período, que gera saber e cultura, que contribui para auto-estima de um país e que, ainda assim, continua a ter muito público para encantar pelo mundo fora. A música portuguesa tem todas as condições para crescer muito mais.

Antes da pandemia, a quota mínima da música portuguesa na rádio era de 25%. Com a paragem OBRIGATÓRIA dos concertos, a quota foi aumentada para 30% para tentar compensar as perdas. Os músicos desdobraram-se em concertos online e foram a companhia de milhares de pessoas, através das plataformas digitais. Os poucos concertos que aconteceram durante a permanente incerteza da pandemia tinham lotação limitada e inúmeras restrições logísticas. Eu próprio perdi dinheiro em concertos, cuja receita não chegava para cobrir despesas, apesar de estarem esgotados.

Agora, a resposta à retoma da normalidade (acrescentada de 10% de inflação) é a não renovação da quota, voltando para os 25%. Num país com o mínimo de amor próprio, a rádio nacional deveria passar muito mais do que 30% de música portuguesa. O facto de existir pressão para não renovar a quota dos 30%, voltando para trás na História, diz tudo sobre a ambição de alguém que, aparentemente, se está completamente nas tintas para a produção nacional. Somos a banda do cocktail, a tocar para entreter a pausa na emissão, enquanto o mundo parava e não chegavam grandes novidades lá de fora. Agora voltou a normalidade e, com ela, regressou a nossa irrelevância. Nem nos deixam o prémio de consolação.

Da parte de quem dirige a cultura, é um gesto político claro. Esperemos não ter uma cultura vergada aos interesses económicos de grupos privados, em vez de estar ao serviço dos artistas, que são quem produz a cultura e, logo, de longe, a parte mais importante no que toca à missão deste ministério.

O que se pede não é um subsídio, nem um favor, é apenas o reconhecimento do imenso valor da produção nacional, sem custos para o contribuinte, e bem mais modesto do que muitos incentivos dados a empresas privadas sob a forma de isenções fiscais, muitas delas justas.

O que se pede não é uma censura de conteúdos ou uma obrigação de passar artista A ou B, mas não existe nenhuma indústria sem regras.

Luís Mendonça, presidente da Associação Portuguesa de Radiodifusão, afirma que “a quota condicionava a liberdade e posicionamento das rádios” e que “não há produção suficiente para assegurar esses valores”. Claramente existe muito mais produção nacional do que aquela que este senhor conhece, o que dá trabalho é procurá-la. Pensava que isso fazia parte do trabalho de qualquer DJ de rádio ou das pessoas que elaboram as playlists das estações.

O problema de pensar a rádio exclusivamente na perspectiva das receitas publicitárias, é que as rádios não existem sem música e que este é o seu o principal produto. Acontece que o mercado da música também tem as suas regras e nós não podemos aceitar que nos vendam de qualquer maneira, mesmo que não sejamos protegidos pelo nosso próprio ministério.

Numa curiosa entrevista à “Rádio e Televisão de Famalicão”, o mesmo Luís Mendonça, que não quer a imposição ditatorial das quotas, pede intervenção do Estado junto das rádios locais para manter as mesmas sustentáveis através de mais publicidade institucional. Portanto, o Estado deve meter dinheiro nas rádios locais porque elas desempenham um papel importante na descentralização (algo com o qual concordo), mas depois o Estado e a sociedade que paga o subsídio não podem esperar qualquer tipo de contrapartida civilizacional básica, com o aval do Ministério da Cultura.

É uma forma divertida de liberalismo, mas também não se trata propriamente de socialismo venezuelano, como tenho lido nos comentários de pessoas revoltadas, trata-se de um processo de adaptação que, oxalá, nos conduza a paradigmas como aqueles que encontramos em Espanha ou França, países que tanto adoramos elogiar no que toca a não pagar impostos, mas com quotas de música nacional na ordem dos 40%, no caso de França e, com um domínio absoluto da música espanhola na sua rádio nacional, no caso dos nossos vizinhos. Ambos os países com resultados espectaculares no que toca a terem uma indústria musical fulgurante e exportadora, algo com o qual seria maravilhoso poder sonhar aqui no rectângulo. Nós só queremos trabalhar, ser melhores, crescer, exportar mais, levar a nossa língua e deixar um bocado das nossas palavras nas bocas do público.

A estimada Luísa Sobral cedeu-me o relatório que a AudioGest elaborou, que demonstra, inequivocamente, através dos números de receitas publicitárias e medições de audiências que, ao contrário do que era afirmado por rádios que antigamente passavam 3% de música portuguesa, o investimento em publicidade veio a subir desde a imposição de uma quota mínima, não perdendo audiências apesar das previsões catastrofistas.

Toda esta falta de vontade em trabalharmos juntos e melhor resume-se a garantir que a mesma música passa 120 vezes (a sério) num mês porque sabem que o ouvinte não vai mudar de estação e assim podem vender mais publicidade. Tenho a certeza de que conseguem continuar a vender publicidade com música portuguesa, tal como aposto que a SIC recebe um balúrdio no intervalo de programas de humor nacional, como o de Ricardo Araújo Pereira. Quem é que não quer ir comprar botijas de gás depois de uma canção de Pedro Abrunhosa?

Da mesma forma, as quotas estão a provar ser uma ferramenta realmente útil para corrigir assimetrias sociais, tal como na questão da igualdade de género. Tenho a sensação de que muitos dos que mais defendem quotas na imigração, são os que mais gritam contra as outras quotas que já não dão tanto jeito. Talvez um dia as marcas que compram espaços publicitários comecem a exigir alguma responsabilidade social às rádios.

Uma quota de 30%, significa que as rádios podem passar 70% de música estrangeira. Não me parece que seja tão radical assim.

Se a música portuguesa não passar na rádio nacional, onde é que vai passar? Sonho com um país que não está permanentemente à venda e que reclama o direito de existir, com uma cultura com voz própria.

Não é por patriotismo. É porque a vida é melhor com música e ela é central nas sociedades humanas, seja na rádio, no baile da aldeia onde se dançam as nossas canções, na canção que as mães cantam para embalar as suas crianças, as que cantamos em plenos pulmões nos festivais de Verão ou a ganhar a Eurovisão em português, com uma canção que correu as bocas do mundo.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas