Está em busca da felicidade? Há um curso que a ensina (ou pelo menos tenta)
Felicidade
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Portugal ocupa o 57.º lugar da tabela correspondente à Felicidade Interna Bruta de cada país. Ainda assim, Miguel Prata Roque deparou-se com alunos “profundamente deprimidos”, reféns de ruas “repletas de desesperança”, o que desbloqueou o seu curso de “como ser feliz” — ainda que não ensine a sê-lo
A vida corre crise, atrás de crise, atrás de crise. E há espaço para ser feliz? Por baixo de um raio de sol, talvez – não fosse a inflação fazer sombra aos dias. Mas neste 20 de março, assinala-se o Dia Internacional da Felicidade. Para a encontrar, a Fábrica Braço de Prata, em Lisboa, recebe o professor e jurista Miguel Prata Roque que, pelo segundo ano consecutivo, promove uma sessão de tertúlias que serve de arranque ao Curso de Aperfeiçoamento em Direito da Felicidade. Em cima da mesa, a questão: “Como ser feliz em 20 lições”. Mas atenção: Esta não é uma receita digital, que dá acesso a um medicamento passível de ser encontrado nas farmácias locais - muito embora também se fale do uso e usufruto das drogas e dos seus efeitos. E desengane-se quem pensar que roça o esotérico – ainda que inclua laboratórios de expressão corporal e dramática.
Miguel Prata Roque não seguiu direito para “fugir à matemática”, mas gosta do que faz. E o que faz são contas às várias formas que o Estado pode usar para produzir felicidade, desmontando e cruzando-a com várias temáticas.
A “busca da Felicidade” e os caminhos para lá chegar
Busca do quê? “Ninguém sabe o que é no seu absoluto”, diz agora João Taborda da Gama, um dos formadores do curso. Afinal, o tema central ninguém sabe designar. “Eu, pelo menos, não sei”, reformula. É isso mesmo que Miguel Prata Roque procura desconstruir. “Quero abrir a discussão para a questão da felicidade enquanto direito, não para o que nos faz individualmente felizes” - se assim fosse, de tão subjetivo, o curso não teria fim. Mas tendo, o caminho trilhou-se mapeando por entre várias “versões ou aproximações de felicidade”, como assim designou Taborda da Gama.
Disse-o na última sexta-feira, quando o relógio acabava de bater as 11h da manhã. A tarde ainda estava demorada, mas para si o dia já ia longo. “Vi o Sol nascer, e estava lindo. Esse momento fez-me feliz. Não pode ser também considerado felicidade plantada?”. O uso do “também” advém da pergunta que antecedeu esta descrição da sua manhã: A felicidade que resulta do uso de drogas recreativas não é plantada? A resposta do jurista João Taborda da Gama pressupõe de uma outra pergunta: Não é igual para tudo o resto?
“O nosso cérebro reage a estímulos, por isso, quando descemos ao detalhe da questão, concluímos que as pessoas usam drogas para alterar a sua consciência”, continua. “E o seu lugar-comum é o de aumentar o prazer e diminuir o sofrimento, fazendo as pessoas sentirem-se melhor, ou menos mal”. Esse alterar de consciência, explica, é jurídica e filosoficamente um direito que, por sua vez, pode ser consumado, por exemplo, no ato de rezar ou meditar. “E há substâncias que ajudam nesses processos”.
São estas questões que Taborda da Gama vai abordar a 24 de abril, dia em que está calendarizada a temática “Felicidade e Drogas”. O critério do professor Miguel Prata Roque, aquando do momento de escolher quem a ele se juntava, foi precisamente essa divisão por temas. “Começamos com os mais institucionais”. E com “institucionais” quer dizer do Direito à Política, da Cidadania à Administração, das Prisões aos Tribunais, das Despesas Públicas aos Impostos e da Economia ao Trabalho. Depois, segue-se tudo o resto: Religião, Sexualidade, Saúde, Drogas, Cultura, Música, Diversidade e, enfim, o Humor - que fica à responsabilidade de Hugo van der Ding.
"Felicidade é mais sorrir do que uma gargalhada"
Não se considera “propriamente” um humorista e, à data da conversa, não fazia ideia do que ia falar no seu segmento do curso. Ainda assim, não deixa de ter resposta na ponta da língua sobre uma relação que diz ser “indissociável” entre os dois conceitos: “A experiência humana é uma busca da felicidade, e o humor é um dos caminhos para lá chegar”. Ou seja, conjuga várias fases do riso? Van der Ding responde: “Não é forçoso que seja assim. O riso pode ser nervoso, ou mesmo sarcástico. Felicidade é mais sorrir do que uma gargalhada”.
Mas voltando às letras que escrevem “Direito”, “Justiça”, ou “Impostos”, reduzida é a probabilidade de, pelo meio, se encontrar um sorriso - pelo contrário. "O direito ainda é visto como algo punitivo”, diz Miguel Prata Roque, ao mesmo tempo que ajuda a ilustrar o cenário “iconográfico assustador” de um tribunal. Os juízes, para começar, vestem-se de preto, e estão, como o Ministério Público, num palanque superior aos advogados – que também se vestem de preto –, às testemunhas e às pessoas que comparecem.
Como é que pode, então, o sistema judicial português estar alinhado com a Felicidade? “Nunca estará, porque a sociedade está sempre em mudança. O que é preciso é ir somando felicidade à felicidade atual", continua o professor.
O que é que o Direito deve à Felicidade? “Tudo”. E o Estado? De tudo, um pouco
Nas palavras de Miguel Prata Roque, “cada um tem a sua forma de ser feliz”, mas para o descobrir é necessário “experimentar a vida”. É por isso que este curso não é um “kit de autoajuda”, mas tem, isso sim, como objetivo conduzir à compreensão, sem “estudar procedimentos legislativos”, de como é que o Direito, a Administração Pública e os Tribunais podem contribuir para criar bem-estar e felicidade coletiva - afinal, está consagrado na Constituição.
Lê-se nas primeiras dez palavras do artigo 9.º, alínea c), referente às tarefas fundamentais do Estado. “Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo”. Como? Prata Roque responde: “Através de políticas públicas amigas da saúde física e mental, do lazer, do descanso, da vida profissional e pessoal”. Isto porque, apesar de nos rankings de índice de felicidade Portugal se posicionar no primeiro terço da tabela – ocupando atualmente o 57º lugar entre os 146 países onde se mede a Felicidade Interna Brutal (FIB) - isso não invalida que o professor se tenha deparado com alunos “profundamente deprimidos”, reféns de ruas “repletas de desesperança” – antagonicamente à ideia de felicidade enquanto liberdade.
Promover políticas de cultura permite que tenham acesso a essas manifestações culturais.
Vários são os setores sociais que, na visão de Miguel Prata Roque, têm de mudar. Entra novamente a justiça em cena. “Dá a sensação às pessoas de que não lhes vale em tempo útil, além de que não é acessível a todos – os custos são muito altos”, continua, regressando à ideia de felicidade enquanto liberdade: limitada a segunda, fica impossibilitada a primeira.
Ao mesmo tempo, as pessoas não podem exigir que o Estado as faça felizes, quase como se felicidade se tratasse de um bem material – até porque “programar a felicidade individual” não pode passar pelo poder intervencionista do Estado. Pelo menos, na ideia do professor, que se confessa “crítico” a alguma legislação. Exemplifica: “sancionar o consumo de açúcar ou sal, por serem prejudiciais à saúde, é impor esse poder proibitivo e limitativo de liberdade”. Um outro exemplo, é a questão do uso de drogas e a sua proibição.
João Taborda da Gama pega na filosofia do inglês Herbert Spencer: “A liberdade de cada um termina onde começa a do outro”. A liberdade do uso de drogas, naquilo que diz o jurista – e sublinha não ser original seu – deve terminar quando começa a causar danos a nível social, mas não antes. Explica: “O mais visível é a adição, que é, em si, uma consequência de destruição do seu pressuposto” – o de alteração da consciência em detrimento de uma boa sensação.
À parte desta temática, Miguel Prata Roque acrescenta ainda que “a legislação também contribui para retirar felicidade sexual às pessoas”. Aqui entra Marta Crawford que, na sua qualidade de sexóloga, estará a dar a aula referente à relação entre a “Felicidade e a Sexualidade”, programada para o dia 20 de abril, no qual, esclarece que é “dimensão fundamental da saúde e bem-estar reconhecer os Direitos Sexuais como direitos humanos”.
Marta Crawford
DR
A “preguiça criativa” é uma ferramenta para a “economia da Felicidade”
É o tempo, o ter tempo, o dar tempo e o perder tempo sem o perder. “Um escritor, um poeta, um músico. Todos precisam de momentos em que, aparentemente, não estão a fazer nada”, explica Miguel Prata Roque. Mas é em “aparentemente” que se esconde a verdadeira utilidade do direito à preguiça: “Porque preguiçar traz valor”.
Valor esse que ocupa o espaço de introspeção e reflexão, materializando-se na criatividade artística. É para isso que servem os laboratórios de expressão corporal e dramática que integram o curso. Um tempo de lazer e de promoção de um pensamento sem as amarras do dever, criando uma ligação entre as artes e entre alunos: “Nessa dimensão prática, o objetivo é que os formandos ganhem inteligência corporal e interajam entre si".
As posturas corporais e a sua importância para a felicidade refletem-se, continua o professor, ao “fazerem parte do cerne do mal-estar”, podendo traduzir-se nas relações com o outro – seja em falta de empatia ou, no limite, em agressões. Marta Crawford volta a relacionar a questão com a sexualidade, onde a falta de “consentimento mútuo” pode resultar numa forma de agressão. Desenvolve: “Muitas vezes a resposta de quem se sente pressionado é afirmativa (ou mais propriamente um NIM), que ocorrer por sentimento de culpa, por receio da reação do outro, ou por ignorância”.
Há várias fontes que nos permitem sentir felicidade mesmo sem atividade sexual. Uma delas é o “sorrindo, não rindo” do Humor, onde também está presente a comunhão interpessoal: “É ver as coisas com os mesmos olhos”, diz Hugo van der Ding. O riso é outra coisa: “é compor música sem saber tocar instrumentos, porque pode funcionar como forma primária de transformar a tristeza”.
Através desta compatibilização das relações e do balanço entre tempo de trabalho e lazer, oleia-se a roda da economia da felicidade circular, na qual “as pessoas são mais produtivas”, diz Miguel Prata Roque.
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