Quando o PS se reuniu na Comissão Política Nacional para avaliar o acordo com PCP e BE, em 2015, Fernando Rocha Andrade não acreditava no sucesso da ‘geringonça’. Na altura, disse que o PS não podia “bater a porta” aos dois partidos que escancaravam a porta do poder a António Costa, até porque “parecia mal” ao eleitorado socialista “não fazer um acordo de esquerda”, mas avisou: “O pior que pode acontecer é eles aceitarem.” A história do desacerto de Rocha Andrade com a ‘geringonça’ foi contada pelo próprio, mostrando uma transparência e desprendimento próprios de quem está de bem com o que pensa e com o que faz.
Os socialistas perderam hoje um dos seus políticos mais bem preparados e desempoeirados.
Fernando Rocha Andrade, nascido a 19 de fevereiro de 1971, fez toda a sua carreira profissional em Coimbra, onde dava aulas de Economia e Finanças Públicas. Além do político, Rocha Andrade era conhecido de todos pelo seu humor, por ter amizades que não olham à cor partidária e que iam desde os que, como ele, gostam de banda desenha da e festivais de música, até aos mais tradicionalistas da academia coimbrã. Fumador e bom garfo, mais preocupado com as necessidades imediatas do que com a saúde, sempre que autorizado, tinha o cigarro na mão – “Sou um grande contribuinte para o Estado Social [em impostos sobre o tabaco]”, chegou a gracejar ao Jornal de Negócios, no dia em que fez a defesa da sua tese de doutoramento em Coimbra.
A tese, na especialidade de Ciências Jurídico-Económicas, foi terminada já enquanto secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, no primeiro Governo de António Costa, e aprovada com distinção e louvor, por unanimidade. Enquanto jurista estava no Ministério das Finanças entre economistas. Foi dos poucos juristas a integrar o grupo de peritos que em 2015 prepararam o cenário macroeconómico para o programa eleitoral do PS. Seria essa também uma das bases para as negociações para a ‘geringonça’, da qual duvidava, mas que depois percebeu – admitiu o próprio – que havia um grande empenho no acordo.
Foi na sequência desse trabalho com outros especialistas como Mário Centeno, João Leão, Vítor Escária, João Nuno Mendes, João Galamba e Vieira da Silva que entrou no Governo.
O quase quase ministro
Próximo de António Costa, trabalhou com o primeiro-ministro desde o governo Guterres, quando Costa era secretário de Estado e depois ministro dos Assuntos Parlamentares. Começou aí uma ligação profissional e de amizade, apesar de se tratarem por você. Um dia explicou que assim era por força do hábito. Quando Costa foi para ministro da Administração Interna no Governo Sócrates, Rocha Andrade foi com ele para subsecretário de Estado da Administração Interna e, por isso, era um dos “ministeriáveis” em 2015 para essa pasta.
O primeiro-ministro preferiu colocá-lo no centro nevrálgico do Governo, as Finanças, com Mário Centeno. Só tinha conhecido o então ministro das Finanças no grupo dos economistas e a complementaridade entre os dois, um jurista outro economista, acabou por resultar bem.
Foi, contudo, sol de pouca dura. Em 2017, estourou a polémica sobre os convites da Galp a governantes para idas a França assistirem a jogos de Portugal no Euro2016 e Rocha Andrade era um deles. Em causa, no seu caso, estava o facto de a empresa ter um contencioso fiscal com o Estado e poder haver um conflito de interesses. O então governante negou, pagou as despesas à empresa e decidiu afastar-se de todas as decisões que implicassem a Galp, para não haver dúvidas sobre a sua conduta. Contudo, o caso não parou de encher as páginas dos jornais e saltou para o Ministério Público e Fernando Rocha Andrade, bem como os restantes membros do Governo que tinham sido convidados, acabaram por apresentar a demissão.
Em 2020, quando Mário Centeno saiu das Finanças para o Banco de Portugal, o nome de Rocha Andrade voltou de novo à baila para o substituir, mas as cinzas ainda quentes do Galp Gate acabaram por fazer com que a hipótese fosse posta de parte.
Fernando Rocha Andrade, que sairia do Governo para o Parlamento, aí ficou até ao fim da legislatura, em 2019.
Enquanto deputado, além de bom tribuno, liderou algumas causas civis. Um dos exemplos foi a promoção de uma alteração às rígidas regras de direito sucessório em Portugal, que obriga que entre 1/3 e 2/3 das heranças têm obrigatoriamente de ser canalizados para os herdeiros legais. Rocha Andrade deu um pequeno passo para separar o amor do dinheiro, no casamento e na morte, ao propor que os casais possam renunciar previamente à herança um do outro.
Sem meias palavras
Assertivo, provocador e sem meias palavras, Rocha Andrade colocava-se no lado esquerdo do espectro político e é com esse filtro que se podem ler algumas das políticas que protagonizou. No cenário macroeconómico do PS, o economista defendia uma rutura com o modelo económico que era seguido pelo então governo PSD/CDS para que o país começasse a crescer.
Nessa circunstância, estudou vários cenários para a reintrodução do imposto sucessório e do imposto sobre fortunas, propostas que chegaram a constar do programa de Governo de PS em 2015 e que entretanto o partido abortou. Contudo, quando chegou ao Governo, foi o artífice do adicional ao IMI, que acabou por ser batizado como “imposto Mortágua”; acabou com o quociente familiar em IRS, um sonho do CDS, e começou a desmantelar os agravamentos fiscais da troika.
Foi, aliás, sobre o quociente familiar que teve as maiores críticas, tendo sido acusado de fazer um “ataque à classe média”. Ironizou na resposta dizendo que sim, que estaria a atacar a classe média se essa classe média fossem “os políticos ou as pessoas que comentam notícias na televisão”, com salários bem acima daquilo que são os níveis médios do país.
Foi também o seu estilo mais descontraído e sem poeiras a marcar o Terreiro do Paço. Nas primeiras reuniões que teve com a Autoridade Tributária, uma organização que se fecha sobre si mesma por instinto de auto-preservação, apareceu sem gravata, causando arrepios a alguns dirigentes conservadores. E, sem apego aos formalismos apreciados na administração pública, exigiu ao Fisco transparência – ao publicar tudo quanto fossem informações vinculativas – e ainda que começasse a falar português com os contribuintes. Numa e noutra, não teve sucesso, mas deu um abanão na estrutura.
No debate político, gostava da esgrima de argumentos, e não resistia a alguns toques provocatórios. As críticas que foi recebendo do vasto mercado da consultoria fiscal, com forte presença mediática e grande insatisfação com a ‘geringonça’, atribuiu-as à “actividade económica muito significativa no eixo Marquês de Pombal e da Avenida da Liberdade”.
Nos últimos meses de vida, já a doença o consumia, não desistiu da intervenção pública. Continuou a escrever opinião e respondia sempre com agrado aos desafios que lhe eram lançados. Como o último contributo que deu para o Expresso, num duelo com João Gama. Quanto lhes perguntámos se “este é o Orçamento de que a classe média e os jovens precisam?”. Rocha Andrade respondeu-nos, prontamente, que sim, e quis saber quem seria o adversário. Ou, pelo menos, “se está à minha esquerda ou à minha direita”. Porquê? “Só preciso de saber para ajustar o argumento.”, justificou.
Morreu um combatente, com a mira sempre bem ajustada.