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Entre mundos: da Síria para Portugal

Entre mundos: da Síria para Portugal

Ghalia Taki é da Síria, em Damasco, a capital mais antiga do mundo. A sua família foi a primeira a pedir asilo em Portugal. Sabes quais são os maiores obstáculos que se colocam a uma pessoa refugiada?

Entre mundos: da Síria para Portugal

Joana Leitão

Diretora editorial Expressinho

O que a levou a abandonar o seu país?

Precisávamos de uma solução para o nosso filho e para a família inteira: encontrar um país seguro para ter uma vida estável, sem guerras e torturas por termos determinadas ideias ou crenças.

Conte-nos um pouco da sua história até cá chegar.

Estudei tradução inglês-árabe e, em 2003, mudei-me para a Nigéria com o meu marido, onde vivemos três anos até a insegurança nos levar ao Gana, onde iniciámos um negócio. Em 2011, com o colapso económico, perdemos tudo e regressámos à Síria. A guerra tinha começado e, após o meu marido escrever contra o regime, foi detido e torturado. Quando foi libertado, fugimos novamente para o Gana, sem nada, procurando segurança para a família.

Together for Change - Escola Salesianos, Manique

O que aconteceu depois?

Tentámos obter vistos para a Alemanha e para o Canadá, onde temos família, mas sem sucesso. Percebemos que, com passaportes sírios, não conseguiríamos entrar em país nenhum, nem árabe. Em 2014, o meu marido recorreu a um traficante e comprou quatro passaportes falsos por 35 mil euros. Queríamos chegar à Suécia, conhecida pelo bom acolhimento de refugiados. Fizemos uma escala em Lisboa e fomos detidos no aeroporto. Fomos obrigados a assinar papéis em português, sem ter apoio na interpretação, e só quando fomos detidos percebemos que era um pedido de asilo.

Qual foi a maior dificuldade?

Esperar pelos documentos e pela decisão do nosso caso, que demorou mais de 18 meses. Vivíamos em constante incerteza, como se estivéssemos suspensos entre dois mundos. O sentimento de impotência estava a consumir-nos, além de ter sido maltratada e discriminada pela minha religião e por usar lenço, o que me levou a perder o meu bebé no primeiro dia, sem ter recebido qualquer tipo de apoio. O centro de detenção - onde eu estava com a minha mãe, o meu filho e o meu marido - não tinha condições para idosos nem para crianças.

De que forma geriu a educação do seu filho?

Foi um desafio doloroso inscrever o nosso filho numa escola. Ele estudou no Cambridge School, no Gana, onde a língua materna é o inglês, fala árabe 50%, mas não sabe ler nem escrever árabe. Ele era muito bom aluno e era muito difícil para ele, depois de perder tudo - a casa, a escola, os amigos - estar em casa. Depois de sete meses, conseguimos alugar uma casa e colocar o nosso filho numa escola, mas, passados menos de um mês, a direção da escola pediu para mudar de escola, porque nenhum dos professores falava inglês…

Together for Change - Escola Salesianos, Manique

Como correu?

Ele mudou de escola e, no final do ano letivo, teve de mudar de escola novamente, porque passou para o quinto ano. Ficámos mais tranquilos porque começou a falar um pouco de português e pensámos que a situação seria mais fácil para ele.

E não foi?

Não… De repente, começou a mostrar-se mais fechado e triste e, após muitas tentativas, percebemos que estava a enfrentar casos de bullying: as crianças diziam que ele tinha de voltar ao seu país e chamavam-lhe o sírio, refugiado e o muçulmano terrorista.

Como lidou com a situação?

Quando fizemos queixa à professora e à direção, a resposta era sempre a mesma: "São miúdos e não podemos fazer nada." Depois de agressões físicas e verbais, acabou por aprender a proteger-se, acabando por assumir o papel de defender os alunos que enfrentam maus-tratos. Ele terminou agora o 12.º ano e está a pensar no que é melhor para o seu futuro. Estas experiências foram muito duras, mas ao mesmo tempo tornaram-no mais maduro e contribuíram para a sua rica cultura, tornando-o uma pessoa mais tolerante e flexível.

Together for Change - Escola básica 2+3 Quinta da Lomba, Barreiro

Para a pessoa refugiada, que tipo de apoio é mais necessário?

O apoio não tem de ser financeiro, mas sim um apoio à adaptação a um país novo, a uma língua totalmente diferente, a uma lei nova. Alugar uma casa sem ter os documentos necessários e sem um fiador era uma missão impossível. É difícil lidar com a burocracia e a falta de preparação das entidades responsáveis, bem como de cursos de português. Já vivi em três países diferentes e nunca tive Número de Identificação Fiscal (NIF) ou Número de Identificação da Segurança Social (NISS). Demorámos muito tempo a perceber porque é que uma pessoa doente tem de ter estes números e uma residência para conseguir inscrever-se num centro de saúde e ter acesso a cuidados de saúde.

O trabalho humanitário sempre a cativou? Em Portugal, tal como fez na Síria, dá apoio a migrantes e refugiados…

Trabalho no Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) desde 2015, primeiro como intérprete e mediadora cultural e, desde 2017, como coordenadora de Bolsa de Intérpretes do JRS. Colaboro também com o projeto Together for Change, que visa sensibilizar as escolas para as questões da migração e do asilo.

Together for Change - Park International School, Alfragide

Fale-nos um pouco desse projeto.

O Together for Change é um projeto financiado pela Comissão Europeia, que visa sensibilizar as escolas para a promoção de competências do pensamento crítico e da inclusão dos migrantes, bem como incentivar os alunos a participar em ação de solidariedade com os jovens migrantes nas escolas e na comunidade local.

Quais os objetivos?

O principal objetivo deste projeto é chegar a 8500 estudantes em oito países europeus diferentes. Pretende também atingir entre 160 a 260 professores e encorajar cerca de 400 alunos a participarem em iniciativas e ações de solidariedade, além de formar 72 migrantes ou refugiados. Também cerca de 60 escolas estarão envolvidas ao longo da duração do projeto, nos seguintes países: Bélgica, Espanha, Portugal, Itália, Croácia, Hungria, Grécia e Sérvia.

Together for Change - Agrupamento de Escolas Ruy Belo EB 2-3 ,Sintra (ação solidária para mostrar a cultura da Síria, incluindo os doces)

Outro objetivo é capacitar os migrantes e os refugiados, oferecendo-lhes uma formação para o desenvolvimento de competências e envolvendo-os em ações de sensibilização nas escolas. É importante promover o envolvimento cívico dos jovens estudantes na sua comunidade escolar, sensibilizando-os para as necessidades de migrantes através de ações de solidariedade promovidas por associações de migrantes e organizações locais.

Together for Change - Park International School, Alfragide

Cuidar do outro e ser inclusivo é uma vocação ou um dever?

Acho que cada um de nós tem uma obrigação para com os outros de formas diferentes. Cada um tem um papel e uma responsabilidade que tem de assumir na comunidade onde vive. Através do meu trabalho, não só posso ajudar as recém-chegadas a ultrapassar os obstáculos e a começar uma nova vida, como também estou a tentar contribuir para a construção de uma diferença positiva na sociedade em que vivo. Espero continuar a trabalhar para promover a integração e ajudar a construir uma sociedade mais inclusiva. Contribuir para criar um ambiente mais inclusivo e compreensivo é outro dos meus objetivos.

Together for Change - Park International School, Alfragide

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: expressinho@estrelaseouricos.pt

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