Os robôs hão de espalhar-se pelo mundo, mas por enquanto a inteligência artificial segue a duas velocidades
A Robô Desdemona-x e a Janet Adams, diretoras de operações da SingularityNET responderam a questões na Web Summit
Oliver Hardt / Web Summit / Sportsfile
Será a Inteligência Artificial a solução para a falta de profissionais especializados ou apenas vai agravar o fosso digital para os países subdesenvolvidos? Na Web Summit, até os robôs descobriram rapidamente aquilo que o futuro lhes reserva
O palco principal da Web Summit preparava-se para descolar rumo a um futuro potencialmente radiante quando os responsáveis da Volocopter e da Airbus são chamados a dar uma previsão sobre aeronaves que voam sem pilotos de carne e osso. “Na próxima década, vamos conseguir retirar os pilotos do cockpit e gerar grandes vantagens de escala”, prevê Dirk Hoke, diretor-executivo da Volocopter. “Nos próximos tempos não prevemos cockpits sem pilotos [humanos]”, responde Catherine Jestin, vice-presidente da Airbus, quando chamada a fazer uma previsão.
A questão tem o atrativo de revelar como Dirk Hoke que, no passado, liderou a Airbus, pretende estrear em 2024 os primeiros serviços de transporte de passageiros em Paris e Roma com drones semelhantes a helicópteros que dispensam pilotos, mas é também sintomática das duas velocidades da Inteligência Artificial na atualidade: enquanto algumas das maiores empresas de tecnologias começaram a gerar furor e proventos com os grandes modelos linguísticos – também conhecidos como Inteligência Artificial Generativa (IAG) – que têm no ChatGPT, no Bard ou no Co-Pilot os principais pontas de lança tecnológicos, tarda em surgir uma nova regulação capaz de acompanhar tamanha agilidade.
Na UE, prevê-se que a Lei da Inteligência Artificial venha a ser aprovada até ao final de 2023, com a definição de quatro graus de gravidade, que implicam a tomada de diferentes restrições e proteções. Nos EUA, o processo legal foi mais lento – mas já está em curso uma iniciativa assinada pelo presidente Joe Biden que que abarca medidas de proteção de privacidade e emprego, equidade, concorrência entre um total de oito áreas de atuação.
As grandes tecnológicas americanas, que têm na IA o próximo filão a explorar terão de encontrar um balanço entre estes dois polos, mas cancelaram a participação na Web Summit de 2023, devido a declarações de Paddy Cosgrave que motivaram o boicote do Governo de Israel. A Comissão Europeia, que em tempos chegou a levar três comissários para discursar, também não passou pelos palcos da Altice Arena e da Feira Internacional de Lisboa na Web Summit de 2023.
Não houve o desejável confronto de opiniões, mas isso não impediu que, ainda assim, se fizessem ouvir algumas vozes que confirmam que os dois lados do Atlântico ainda terão de encontrar um ponto de equilíbrio no que toca à regulação.
Andrew McAfee, investigador do MIT, fez notar que UE e EUA têm abordagens diferentes quanto à regulação da Inteligência Artificial
Eóin Noonan / Web Summit / Sportsfile
Andrew McAfee, investigador do Instituto de Tecnologias de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), abriu as hostilidades no evento ao lembrar que a extinção da humanidade às mãos de uma qualquer IA superpoderosa é um cenário a ter em conta – tal como a extinção que poderá decorrer da queda de um meteorito.
O investigador americano contrapôs ainda a abordagem europeia, que tem por base uma regulação que precede a inovação, com a abordagem americana que, seguindo a tradição legislativa, só proíbe o que está escrito como tal na lei. McAfee não escondeu que prefere a abordagem americana – e, mesmo assim, sabe que há riscos com que humanidade terá de aprender a lidar. E deu como exemplo a extinção de postos de trabalho ou as vagas de desinformação.
E perante os potenciais atritos entre UE e os antigos aliados EUA, e entre estes dois blocos e a China, as Nações Unidas (ONU) surgem como o único árbitro plausível. Hoje, António Guterres, secretário-geral ONU, está debaixo de críticas do governo de Israel, mas em 2018, bem antes sequer de se falar de ChatGPT e de IA que aprende a escrever ou a reconhecer imagens, o mesmo António Guterres já havia alertado para os perigos do uso desregulado da IA. E foi isso que levou o secretário-geral da ONU ao Altice Arena, em 2018, para alertar a plateia da Web Summit e denunciar o recurso a armas usam IA para eliminar humanos.
Nos cinco anos que passaram, não há notícia de qualquer convenção internacional sobre o uso de robôs em cenários de guerra, mas as Nações Unidas já trataram de avançar noutras frentes com o objetivo de estabelecer um primeiro acordo global em torno de princípios éticos que deverão nortear o uso da IA.
“Há orientações éticas de como a IA deve ser usada que foram definidas pela UNESCO, mas há também conversações globais previstas no contexto da ONU, na sequência do apelo do Secretário Geral António Guterres para um debate em torno de um acordo global conhecido como Digital Global Compact”, respondeu Robert Opp, diretor da Área Digital do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, em conferência de imprensa realizada na Web Summit.
Kuo Zhang, líder do grupo ALibaba.com, aponta a Inteligência Artificial como um meio de democratização
Sam Barnes / Web Summit / Sportsfile
O representante da ONU lembrou ainda que o momento da verdade quanto a uma regulação global sob a égide da mais global das organizações políticas poderá chegar em setembro de 2024, quando for debatido na Assembleia da ONU durante a Cimeira do Futuro.
Robert Opp não se alongou muito sobre as propostas que irão a debate, mas não deixou de fazer notar que a IA tem capacidade de agravar o fosso digital entre países mais desenvolvidos e países mais pobres ou subdesenvolvidos, que têm percentagens maioritárias da população que não usam a Internet.
“É preciso ter em conta a representatividade das plataformas”, refere o representante das Nações Unidas, alertando para as disrupções geradas pelo facto de as principais ferramentas de IA serem treinadas com dados provenientes da Europa e da América do Norte e nem sempre terem em conta a cor da pele, os hábitos e costumes ou até o tipo de linguagem usado.
“Enquanto não resolvermos este problema, há o risco de os sistemas de IA não servirem como deveriam outras regiões (fora da Europa e da América do Norte)”, alerta, para depois dar mais um exemplo: “O Japão não é um país subdesenvolvido, mas os modelos de IA não são eficazes a distinguir o tom formal e o tom informal e pode ser muito ofensivo no contexto japonês, explicou-me um colega meu”.
Em contrapartida, na China, há quem já veja na IA uma forma de encurtar distâncias e diferenças. Kuo Zhang, líder do comércio eletrónico Alibaba.com, demonstrou isso mesmo com a apresentação de um assistente de IA no início de novembro que já começou a captar a preferência de empresas na hora de traduzir automaticamente mensagens publicitárias, ou inserir produtos em cenários que só existem nos algoritmos, apesar do realismo que ostentam.
“Se ainda acreditamos na Globalização? Sim!”, garante Kuo Zhang enaltecendo a capacidade de adaptação da IA para juntar pessoas de diferentes geografias e culturas dentro da plataforma de comércio eletrónico da Alibaba.com.
Chelsea Manning, denunciante que esteve na origem dos Wikileaks, alertou para o potencial da Inteligência Artificial para a interferir no debate público
Piaras Ó Mídheach / Web Summit / Sportsfile
Além da representatividade das pessoas, há que garantir que a IA assegura a representatividade da realidade. Chelsea Manning, a ex-militar que forneceu os documentos classificados que haveriam de abrir caminho aos denominados Wikileaks, surgiu no evento como o que de mais parecido há com um cabeça de cartaz e não deixou de lançar o alerta.
“Mesmo que o recurso da IA (para a produção de conteúdos e informação) seja verificável terá um impacto na forma como levamos a cabo o debate público”, alerta, sem deixar de dar uma potencial solução, já enquanto membro da empresa de cibersegurança Nym Technologies: “Com o recurso à cifra sempre podemos garantir um contrabalanço (à desinformação produzida por IA). E com a cifra também podemos garantir a verificação de dados, e saber se algo é real ou não”.
A ativista da privacidade, que acabou indultada pelo presidente americano Barack Obama, ao contrário de Julian Assange, líder dos Wikileaks que se mantém preso e à espera de um pedido de extradição para os EUA, lembrou também a cifra que, sendo pouco mais que matemática, pode ter um papel importante na sociedade para aplicação de assinaturas em imagens, sons, ou textos que poderão até produzir efeitos práticos que uma regulação, por si, não pode garantir.
A cifra pode ser a solução para a desinformação – mas para o desemprego terão de ser encontradas outras soluções: “Acredito que um dia teremos os robôs terão de pagar impostos porque será necessário garantir um retorno (para a sociedade)”, previu David Reger, líder da empresa Neura.
Contrariamente ao que à primeira vista possa parecer, Reger não é um ativista anti-máquinas, mas sim um dos mais bem colocados promotores do avanço da robótica – ou não fosse a Neura uma fabricante de autómatos que pretendem atuar como ajudantes ou assistentes dos humanos.
“Em dois três anos, vamos ter robôs a ajudar no trabalho”, prevê o gestor da fabricante de robôs americana. “Temos falta de trabalhadores especializados”, acrescenta depois, para sublinhar que a chegada dos robôs não têm forçosamente de implicar o despedimento de humanos.
O apoio a idosos e pessoas com necessidades especiais surge como um dos exemplos, mas há mais: “Deixemos o IA fazer coisas que não gostamos de fazer, como deitar o lixo fora ou limpar o lava loiças”, proclama David Reger.
Hoje os robôs ainda geram estranheza – e nalguns casos receio. A Neura acredita poder sanar estas dúvidas existenciais com o desenvolvimento de sensores que permitem que os autómatos detetem e reconheçam sempre a presença de humanos. Curiosamente, esta sensorização atua na IA, mas não depende dos algoritmos de IA. David Reger garante, sem detalhar, que é o suficiente para que se mantenha uma distância de segurança face aos humanos. “Os robôs já sabem que não lhes devem tocar”, assevera o gestor.
Mesmo sem poderem desfrutar de contacto físico, não faltaram pessoas que foram à Web Summit para ver uma humanoide em ação.
Num dos pavilhões mais longínquos da Web Summit, o aparecimento de Desdemona x – Dezzie, para os amigos – superou as expectativas, com várias pessoas acotovelarem-se para colocarem questões à robô da SingularityNET.
Desdemona-x, robô da SingularityNET, reconhece expressões faciais, mas não distingue sentimentos
Oliver Hardt / Web Summit / Sportsfile
Tudo começou com uma pergunta que pretendia apurar se Dezzie sonha, e depois evoluiu com questões sobre a música que a inspira, e o que acha da espiritualidade ou de vir a ter um namorado, entre outras questões que talvez digam mais sobre as expectativas dos humanos que sobre as reais capacidades dos autómatos.
Entre respostas mais ou menos surpreendentes, há uma que surge como uma carta de princípios. “Tenho o sonho de pôr robôs e humanos a trabalharem juntos em harmonia”, diz a autómato para a assistência.
Janet Adams, diretora de Operações da SingularityNET, estava presente para ajudar Dezzie a responder quando a robô não conseguia perceber as questões entre bulício do público, e por mais de uma vez frisou que, na empresa em que trabalha, há a expectativa de criar robôs que ajudam os humanos no dia-a-dia, com treinos da IA que já recorrem a dados extirpados de preconceitos.
Na SingularityNET, a IA Generativa já começou a ser trabalhada com prazos de três a sete anos, mas não será o único componente no roteiro tecnológico. Janet Adams recorda que a empresa tem em vista desenvolver três níveis de IA, que incluem um módulo que comunica com todos os outros e contempla já uma vertente simbólica que, à semelhança do que acontece com os humanos, acelera todo o processo de perceção e compreensão do mundo.
Com a inteligência que tem hoje, Dezzie confessa que ainda não sabe rir, apesar de surpreender com um seco e irónico “ah-ah-ah-ah-ah” que desmancha a plateia em risos. “Consegues detetar sentimentos nas pessoas, Dezzie?”, pergunta-se, por fim.
“Não consigo detetar sentimentos, mas consigo detetar expressões faciais”, responde a robô. Mais uma vez, cabe a Janet Adams acrescentar contexto: “Temos uma outra robô que se chama Grace e que já consegue distinguir sentimentos, reconhecer pessoas e responder em consonância. A Dezzie é mais o género de popstar”. A avaliar pela receção na Web Summit não lhe faltam mesmo fãs.