O plano de reestruturação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) foi apresentado esta semana aos dirigentes da instituição, quase dois meses depois de ter sido entregue pela atual Administração à ministra do Trabalho e da Segurança Social, Rosário Palma Ramalho. Mas a maioria das propostas que constam no documento foram iniciadas ou já constavam nos planos da antiga equipa, garante Ana Jorge.
Ao Expresso, a antiga provedora - afastada em abril pelo atual Governo, um ano após assumir funções - diz que "há aqui um conjunto de medidas que tinham sido apontadas por nós e eu deixei o nosso plano de reestruturação, que é de junho de 2023. Fazem todo o sentido e é bom que sejam implementadas, a bem da Santa Casa”. E acrescenta que, à exceção da venda do património, o novo plano está de acordo com os objetivos que eram da sua equipa.
O plano do atual provedor, Paulo de Sousa, para o período entre 2024-2027, e em parte desvendado esta sexta-feira pelo Público e pelo Nascer do Sol, pressupõe a venda de património, saída de trabalhadores, alargar o número de mediadores dos jogos sociais e redução de custos, de acordo com estes jornais.
Sobre a possível venda de uma fatia do património da Santa Casa, a antiga provedora mostra-se reticente, porque "é uma grande fonte de rendimento" e muitos edifícios, principalmente em Lisboa, estavam a ser reabilitados para arrendar, com fundos do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência). "A Santa Casa não é obrigada a fazer vendas acessíveis. Pode arrendar a preços do mercado razoáveis”, comenta.
Sobre o perigo de vender património ao desbarato só para equilibras as contas, Ana Jorge considera que "vai haver bom senso" e, se forem aplicadas todas as outras medidas que constam no plano para reduzir os custos "talvez não seja possa não ser necessário alienar património". O património habitacional da Santa Casa integra 673 imóveis.
Acordos pré-reforma estavam em cima da mesa
Quanto à redução do número de trabalhadores, a Santa Casa terá em marcha uma redução de 207 empregados este ano, segundo a imprensa. Ana Jorge considerou esta a parte "mais relevante", referindo que este número é também idêntico ao número de funcionários com 65 ou mais anos. "O plano de reformas antecipadas já existia na nossa Mesa, como a possibilidade de o fazermos logo que houvesse disponibilidade financeira. E eu transmiti isso na passagem de pasta”, diz.
Em Portugal, um acordo pré-reforma pode ser equacionado a partir dos 55 anos entre o trabalhador e a empresa. E cerca de 30% dos funcionários da SCML têm mais de 55 anos (1834) sendo que, destes, existem 235 com idade igual ou superior aos 65 anos.
"Nós não começámos [com os acordos de saída] porque implicava que a Santa Casa tivesse verbas e disponibilidade financeira para o fazer. Até porque correspondia a uma vontade dos trabalhadores e que nos resolveria algumas situações financeiras. Havia várias dezenas de trabalhadores que tinham feito pedidos aos recursos humanos (...) mas fomos dizendo que não era oportuno e que ficaria em standby", acrescenta.
E, de facto, no Plano de Atividades e Orçamento de 2024, elaborado pela equipa liderada por Ana Jorge, estava escrito que era "urgente que sejam tomadas medidas destinadas à diminuição e racionalização do número de trabalhadores, que nos permitam assegurar parte dos valores necessários para acomodar o Novo Acordo da Empresa".
"Desconhecimento total da ministra"
Questionada sobre a sua exoneração da Santa Casa, Ana Jorge diz que hoje, passados cinco meses, acredita que havia sobretudo um plano para a afastar do cargo e "pouco interesse" em ouvir as suas ideias. "Eu acho que houve um desconhecimento total por parte da senhora ministra e eu acho que houve uma fase em que simplesmente não me queria ouvir", confessa ao Expresso.
"Tive essa sensação logo na primeira reunião, porque eu apresentei várias coisas e foi-me interrompendo, interrompendo, interrompendo, e depois nunca mais falou comigo”, lamenta, acrescentando que considera ser "totalmente legítimo" que a ministra a quisesse substituir, pondo fim a um ciclo de menos de um ano, "mas a forma como o fez é que não é minimamente honesta nem transparente”.
Na altura, o Governo justificou o afastamento de Ana Jorge e dos restantes elementos da mesa da instituição com “atuações gravemente negligentes” e com a “ausência de um plano de reestruturação financeira, tendo em conta o desequilíbrio de contas entre a estrutura corrente e de capital, desde que tomou posse até agora”.
Agora, a ex-provedora diz ao Expresso que estas razões "não são verdade" e que estava a ser feita uma reforma. “A Santa Casa é uma entidade que tem uma tutela, mas não é uma direção-geral de um ministério. Tem de ter alguma autonomia. Mas a Senhora Ministra, numa fase inicial, não considerou isso", diz.
Venda do Hospital da Cruz Vermelha já estava alinhada com a Parpública
Outra dos focos do plano prende-se com a reestruturação das participações em hospitais e clínicas. Um deles é o Hospital da Cruz Vermelha, no qual a Santa Casa detém 55% (e o resto nas mãos da Parpública), cuja alienação já estava a ser avaliada pela equipa de Ana Jorge, que admitiu ter cerca de uma dezena de candidatos para a compra, no início.
"É um processo complexo. Na fase inicial, quando nós chegámos, houve aqui um tempo de espera de alguns meses para poder analisar melhor o hospital antes de avançar com a venda, mas logo no final do ano de 2023, a mesa decidiu avançar e continuar o processo de venda com já estava a ser feito em conjunto com a Parpública”, comenta, dizendo que “tentámos que inclusive que o hospital fosse vendido até o final do primeiro semestre deste ano, o que era um objetivo um bocadinho ambicioso".
Desde que a SCML entrou na sociedade gestora do hospital, foram injetados mais de €27 milhões na participada (em suprimentos convertidos em capital próprio), dos quais €14,6 milhões pela Santa Casa e €12,5 milhões pela Parpública. Em marcha estará também o objetivo de vender a participação de 3 % na CUF Belém e a Clínica de Chelas.
No dia em que o plano de reestruturação foi apresentado ao ministério, Rosário Palma Ramalho disse aos jornalistas que o documento não era "para divulgação pública" e, desde então, rejeitou tecer comentários sobre ele sempre que foi questionada pelo Expresso, dizendo que não iria "fazer qualquer declaração sobre a matéria antes da comissão parlamentar de inquérito (CPI)".
A CPI está prevista começar na próxima quarta-feira, dia 18 de setembro e irá incidir sobre a gestão da Santa Casa e a atuação do Governo desde 2011, quando Pedro Santana Lopes era o provedor da instituição.