Em 1921, uma greve de jornalistas fez nascer três jornais em Lisboa e durou quatro meses
A greve foi longa e lutou por aumentos salariais e direitos laborais como um mês de férias com vencimento pago, faltas justificadas por doença, proibição da demissão sem justa causa e o respeito pelo sigilo das fontes. Portugal vivia um tempo de alta de preços e nós contamos como foi
O aumento dos preços aproximou-se dos 80%, a instabilidade política era grande, sete Governos em doze meses, bens alimentares a escassear, era preciso noticiar as ocorrências e informar os cidadãos numa Lisboa em sobressalto. Os nomes dos jornais, apregoados pelos ardinas que os vendiam, eram magrinhos, muitas vezes com duas páginas apenas devido à alta de preço do papel e materiais tipográficos.
Três dias antes de começar a longa greve dos trabalhadores da imprensa, o jornal A Capital (diário Republicano da noite) dava conta de um artigo publicado pelo seu congénere inglês Times sobre a crise em Portugal. O diário inglês tinha enviado um repórter ao nosso país e anunciava a publicação de uma série de artigos sobre a situação política e social que ameaçava o próprio regime.
Estávamos em janeiro de 1921, ano em que o primeiro-ministro, António Granjo, foi assassinado a 19 de outubro, numa noite de violentos confrontos em Lisboa. Os tipógrafos tinham quase tanta força na produção dos jornais quanto o digital tem atualmente. A imprensa internacional reportava o que se passava em Portugal, e os jornalistas, tipógrafos e distribuidores de jornais preparavam-se para iniciar uma greve que ditaria a suspensão dos mais importantes jornais de Lisboa por um longo período de tempo.
Numa altura em que não existia rádio nem televisão (esta última só chegaria quatro décadas depois), os transportes eram lentos, o telefone um luxo que poucos podiam pagar, os jornais e quem os escrevia e produzia tinham um papel importante no funcionamento da sociedade.
Esse papel do papel ficaria suspenso durante quatro meses.
O vespertino A Capital saiu pela última vez a 17 de janeiro e só retomaria a publicação a 14 de abril de 1921, quando a greve que opôs trabalhadores e empresas proprietárias de jornais se aproximava do final.
Os dois lados deste binómio queriam cumprir a missão de informar a população, e a greve foi ‘mãe’ de três novos títulos:“A Imprensa de Lisboa”, “O Jornal”, e o “Última Hora”.
Para entender este novo conflito que fez surgir três novos títulos em Lisboa, temos de recuar aos finais de 1920, ano em que a taxa centrada de aumento de preços foi de 79,6%, e a Federação dos Trabalhadores do Livro e do Jornal – FLJ apresentou “um caderno de reclamações às empresas de jornais que, desta vez, reúnem exigências formuladas pelas associações de classe dos compositores tipográficos, dos distribuidores dos jornais e dos profissionais de imprensa”, explica José Nuno Matos, investigador do IC − NOVA (Instituto de Comunicação da Universidade Nova) ao Expresso.
As reivindicações apresentadas pelos profissionais da imprensa (não existia Sindicato dos Jornalistas, que foi fundado em 1934), “apresentavam um cariz mais diverso quando comparado com as dos outros sectores, as quais se limitavam a questões remuneratórias”, escreve este investigador no artigo “Profissionais de Imprensa e Sindicalismo na I República”.
Luta por um mês de férias com vencimento
A proposta da ACTIL (Associação de Classes dos Trabalhadores da Imprensa de Lisboa), reivindicava aumentos salariais superiores a 100% para fazer face à escalada galopante dos preços e, também, o “estabelecimento de uma licença anual de um mês, com o vencimento por inteiro, a usufruir de forma intercalada; a consideração de faltas por doença justificada; a proibição da demissão sem justa causa e a salvaguarda dos membros de associações de classe; o respeito pelo sigilo das fontes”, bem como a salvaguarda de uma remuneração mínima para os trabalhadores mais precários, que previa a garantia de “pelo menos, dez dias de trabalho por mês aos revisores suplentes”, como nos conta José Nuno Matos no artigo já citado.
A Imprensa de Lisboa assume-se no seu primeiro número – publicado a 18 de janeiro – como órgão dos trabalhadores dos jornais, que “não ficará contudo restrito a uma mera missão de defesa corporativa. (…) Sendo, pois, este verdadeiramente o nosso jornal, ele será também verdadeiramente o jornal do público, aquele que não tem nenhum interesse reservado em o iludir e que se procurará sempre identificar com as suas justas reclamações”.
Empresas proprietárias lançam O Jornal
José Nuno Matos diz ao Expresso que um dos objetivos de A Imprensa de Lisboa era “obter receitas para financiar” os trabalhadores grevistas. Num outro artigo sobre a greve de 1921, este investigador escreve que a “produção da grande parte dos principais jornais de Lisboa seria suspensa por uma greve de jornalistas, tipógrafos e distribuidores. As opções por parte do leitor da capital sofreram então uma enorme carestia, limitando-se a um pequeno número de publicações, entre as quais O Jornal”, dirigido por jornalistas de A Época, Diário de Notícias, A Pátria, O Século e A Capital.
Este título, que resultou de um acordo entre as principais empresas jornalísticas de Lisboa, tinha este objetivo: “Assegurar que a cobertura do acontecimento não fosse apenas realizada por A Imprensa de Lisboa, propriedade das associações de classe dos trabalhadores da imprensa, dos compositores tipográficos e dos distribuidores de jornais, e por A Batalha. Fundado em 1919, o órgão de informação da Confederação Geral do Trabalho”, e um dos mais importantes diários da época, conta Matos num artigo.
Participantes na Conferência Anarquista de Lisboa de 1925, entre os quais estão dois dos responsáveis editoriais de “A Batalha”: Manuel Joaquim de Sousa e Manuel da Silva Campos [nº28]
A guerra de títulos que opôs proprietários das empresas e trabalhadores da imprensa não foi uma novidade de 1921, ano em que o Diário de Lisboa nasceu a 7 de abril (durando até 30 de novembro de 1990).
Em 1919, quando o jornal A Batalha foi publicado pela primeira vez a 23 de fevereiro, sob a chefia editorial do tipógrafo Alexandre Vieira, influenciado pelos ideais da revolução de 1917, A Imprensa surgiu cinco meses depois. Este título foi coeditado pelos proprietários das empresas jornalísticas que decretaram um lock-out.
Nesse ano, os principais jornais diários que se publicavam em Lisboa foram suspensos por decisão dos seus proprietários. “Na origem direta do lock-out encontramos precisamente uma ação de protesto da classe gráfica contra o encerramento pelas autoridades” da União Operária Nacional e do jornal A Batalha, como se lê no site da Hemeroteca.
A Imprensa foi assim publicada entre 19 de junho e 3 de julho de 1919 e os 13 números podem ser consultados na Hemeroteca Digital.
O Século e o Diário de Notícias, títulos de grande circulação, foram suspensos
D.R.
As greves e os lock-out andaram (várias vezes) a par na imprensa portuguesa na I República.
A longa greve de 1921 terminou sem que grandes decisões fossem tomadas. José Nuno Matos escreve que a “última tentativa de negociação entre as partes [foi] mediada pelos jornalistas Augusto Soares e Melo Barreto, mas seria, mais uma vez, frustrada, sendo surpreendida pelo regresso dos tipógrafos de O Século ao trabalho”.
No início de maio de 1921, “a comissão executiva de greve acabou por chegar a um consenso com [os proprietários dos jornais] A Época, A Luta, Opinião e Diário de Notícias no sentido de um aumento dos ordenados em 40% do seu valor”, escreve José Nuno Matos, acrescentando que o acordo “não incluiu a readmissão dos profissionais da imprensa em greve” no Diário de Notícias.
Última Hora
No jornal O Século, os aumentos salariais ficaram pelos 35%,"argumentando-se a prévia existência de uma tabela de valores superior". Neste jornal, verificou-se igualmente, citando um informe publicado por Manuel Guimarães, o “afastamento definitivo de todo o pessoal da redação, informação e revisão que tomou parte na greve”, conforme foi noticiado em A Imprensa de Lisboa, do dia 9 de maio de 1921.
No final, o balanço da greve não era o mais positivo, reconhecendo-se que o pessoal das empresas “não ficou numa invejável situação económica, apesar dos aumentos conseguidos”, como escreve A Imprensa de Lisboa, 13 de maio, de acordo com um dos artigos do investigador José Matos.
Por último, recordamos que o terceiro título que saiu desta greve se chamava Última Hora. Ligado aos trabalhadores grevistas, surgiu dois meses após o início da greve, como “iniciativa de uma cooperativa de tipógrafos e jornalistas em greve – entre os quais figuravam nomes como Artur Portela, Vitorino Nemésio e os diretores Pinto Quartim e Norberto Lopes”, escreve o investigador José Matos no livro “Jornalistas em Greve − Imprensa e Sindicalismo na I República”.
O jornalista Norberto Lopes, foi um dos repórteres que cobriu a Guerra de Espanha e foi o segundo diretor do Diário de Lisboa. Pinto Quartim, militante anarquista nascido no Rio de Janeiro, esteve ligado a várias publicações.
A greve terminou a 7 de maio de 1921, e A Imprensa de Lisboa publicou-se pela última vez no dia 13.