Embora não afirme categoricamente que os Estados-membros serão incapazes de absorver os €724 mil milhões da "bazuca", o Tribunal de Contas Europeu (TCE) alerta, no seu mais recente relatório, publicado esta segunda-feira, que os atrasos substanciais que persistem, aliado ao elevado número de marcos e metas que ainda não foram cumpridas, constituem uma ameaça à conclusão bem-sucedida das medidas financiadas pelo Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR).
De acordo com a autoridade, até ao final de 2023, apenas 73 dos 104 pedidos de pagamento de subvenções e empréstimos previstos - ou seja, 70% - foram submetidos dentro do prazo. O financiamento correspondente é de €228 mil milhões, 16% inferior aos €273 mil milhões inicialmente projetados. Desse montante, a Comissão Europeia (CE) transferiu para os cofres nacionais €182 mil milhões, associados ao cumprimento satisfatório dos objetivos.
Por essa altura, Portugal já tinha recebido o pré-financiamento de €2159 milhões, ao qual se somou €171 milhões no âmbito do REPowerEU, bem como assinado o acordo operacional, realizado quatro pedidos de pagamento e embolsado esses mesmos cheques. Contudo, o país também enfrentou atrasos, com o terceiro e quarto pedidos de pagamento a serem adiados para o final do ano, quando deveriam ter sido apresentados no primeiro e terceiro trimestres.
A situação é mais preocupante noutros países, com o TCE a revelar que, no final do ano passado, sete países não tinham recebido qualquer financiamento pelo cumprimento das metas do MRR. A Hungria e os Países Baixos, por exemplo, não assinaram os acordos operacionais necessários, enquanto a Suécia, embora tenha assinado o acordo, não apresentou pedidos de pagamento.
Dos fatores que contribuem para esses atrasos, o auditor destaca as dificuldades nos processos de contratação pública, agravadas pela alta nos preços do setor da construção, falhas no aprovisionamento, incertezas quanto à aplicação das regras em matéria de auxílios estatais - "o que não é novo nem específico do MRR" - e uma subestimação do tempo necessário para implementar as medidas.
Além disso, o aumento significativo dos fundos a serem geridos com a introdução do Mecanismo de Recuperação e Resiliência sobrecarregou a capacidade administrativa dos países. Explica a autoridade europeia que a gestão eficiente desses recursos representa um desafio considerável, especialmente quando somada à execução paralela de outros instrumentos financeiros.
Em 14 Estados-membros, incluindo Portugal, os fundos da UE para o período de 2021-2027 dobraram em comparação com 2014-2020, criando desafios adicionais. No caso nacional, o valor equivale agora a 11% do PIB para as políticas de coesão e 7,2% para o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) - no quadro anterior, correspondia a "apenas" 10% do PIB.
O relatório também revela que apenas 19% dos marcos e metas foram cumpridos, apesar de 37% do orçamento do mecanismo já ter sido pago. A maior parte das metas e marcos está prevista para ser alcançada na segunda metade do período de execução, em 2026. Ora, segundo o auditor, esta distribuição pouco uniforme aumenta o risco de os Estados-membros não conseguirem absorver todos os fundos.
Até o final de 2023, menos de 30% dos marcos e metas, que totalizam mais de 6000, estavam relacionados com os pedidos de pagamento. Muitos países optaram por realizar reformas antes de iniciarem os investimentos, mas esse adiamento pode agravar os atrasos e dificultar ainda mais a absorção dos recursos, alerta o Tribunal de Contas Europeu.
Repare-se que os projetos planeados, especialmente os de infraestruturas, são de natureza complexa e estão mais suscetíveis a atrasos devido a fatores externos, como a inflação, a falta de mão de obra e as falhas no fornecimento de materiais.
Ivana Maletić, membro do TCE responsável pela auditoria, adverte que é essencial utilizar as verbas do MRR a tempo para evitar estrangulamentos na execução das medidas na reta final e minimizar o risco de erros e ineficiências. "Há riscos, pois, estando já o prazo a meio, os países da UE retiraram menos de um terço das verbas e avançaram menos de 30% no cumprimento dos marcos e das metas", comenta.
Nos gráficos que acompanham o documento é possivel observar a disparidade entre os valores recebidos pelos Estados-membros e o cumprimento dos marcos e metas. Portugal, por exemplo, recebeu 48% dos fundos previstos, mas cumpriu apenas 28% dos objetivos, enquanto França liderou tanto em desembolso (58%) quanto em cumprimento (53%). Espanha e Itália embolsaram menos do que Portugal, mas a execução foi maior: de 29% e 34%, respetivamente.
A autoridade explica que ainda que os perfis de pagamento tenham em conta a quantidade e a importância dos marcos e das metas, não os refletem necessariamente. "Os dois últimos pedidos de pagamento de Portugal, por exemplo, representam 18% do financiamento total do MRR, mas exigirão o cumprimento de 45% de todos os marcos e as metas incluídos no seu PRR", é clarificado.
Em relação aos dois principais objetivos do mecanismo - de ajudar os países da União a recuperarem da pandemia de covid-19 e torná-los mais resilientes - o documento refere que embora o pré-financiamento de até 13% da dotação total do PRR tenha permitido uma resposta inicial rápida à crise, cerca de metade dos fundos recebidos pelos Estados-membros até o final de 2023 ainda não chegaram aos destinatários finais, nos quais se incluem empresas privadas, empresas públicas de energia e escolas.
Olhando para o caso português, dos €8493 milhões recebidos até 28 de agosto deste ano, apenas €5152 milhões foram pagos aos beneficiários diretos e finais, encontrando-se €1548 milhões "em trânsito" nos beneficiários intermediários.
O relatório conclui que, apesar de as medidas adotadas pela CE e pelos Estados-membros terem tentado mitigar os atrasos, o impacto dessas ações ainda não é claro. O TCE recomenda que a CE trate de garantir a aplicação uniforme das definições e regras do MRR e continue a fornecer apoio para facilitar a absorção dos fundos, além de sugerir melhorias na conceção de futuros instrumentos de financiamento para evitar problemas semelhantes.