Foi já no final da apanha das uvas que o tempo voltou a aquecer. Feitas as contas, e pelo que tenho ouvido, a coisa correu bem. Alguns percalços a meio do processo (escaldão, granizo e muita chuva) fizeram soar o alarme, mas o tempo cooperou e tudo acabou em bem. É uma grande vindima? Vai ser um grande ano? Há umas vozes costumeiras para quem é sempre o “ano do século”, tese que ajuda imenso a vender o vinho; há depois outra frase que muito se ouve: “foi um ano desafiante”, o que, traduzido em linguagem descodificada, se poderia enunciar assim: “Isto ia ficando uma m... à conta da chuva, cheguei a pensar que estava tudo f... mas a coisa compôs-se. Livra! Estamos safos.”
A imagem das vinhas é agora muito curiosa e didática. Há uns dias quem passasse na zona de Arruda dos Vinhos deparava-se com uma paisagem meio estranha: vinhas ainda com as parras bem verdes (é a altura certa para pôr o rebanho de ovelhas a fazer a pré-poda), ao lado de outras parcelas que, de folhas tão escuras, pareciam ter sido queimadas num incêndio; depois entre os dois extremos, uma paleta de cores muito atrativa. De facto, cada casta tem a sua específica forma de fechar o ciclo vegetativo: umas “fecham a loja” logo a seguir à vindima e outras fazem questão de durar mais um ou dois meses, ainda com vivacidade. Esta é também a altura de tentar fazer um Colheita Tardia. Estes calores de final de vindima fazem aumentar os teores de açúcar nos bagos e pode ser que se consiga fazer aquele tipo de vinho, sempre muito doce. E digo “pode ser” porque nada é certo: basta que chova em muita quantidade e as uvas apodrecem num fósforo. Se tudo correr bem, até poderá acontecer que alguns produtores consigam fazer um Colheita Tardia com botrytis, o fungo mágico que origina a podridão nobre, ou seja, uvas podres mas sem podridão acética e que geram o vinho muito especial, cujo modelo se encontra quer em Sauternes quer em Tokay. Já houve um livrito sobre vinhos editado entre nós que traduziu quase literalmente o termo inglês, noble rot, por “decomposição virtuosa”, o que não deixa de ser divertido. Com jeito poderiam ter traduzido por “nobreza empobrecida” ou “aristocracia falida”, quem sabe. Não é nada fácil de fazer, mas, tal como acontece com quase todos os outros vinhos, também neste tipo de vinho é possível muita intervenção, tentando fazer todos os anos aquilo que a Natureza só faz às vezes. É mais um caso em que o fator negócio fala mais alto e, mesmo na região de Sauternes, que deveria ser o farol deste tipo de vinhos, as maquininhas que geram concentração de mostos lá estão para serem usadas quando a Natureza não colabora. Escusado será dizer que por norma avisam os visitantes (e eu ouvi): “Temos a máquina mas nunca usámos!”
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