Os académicos têm dificuldades em aceder a estatísticas fidedignas sobre a Rússia, mas, até onde as investigações lhes têm permitido ir, há conclusões que ganham nova relevância no atual contexto bélico. Uma delas é que, desde a década de 1990, a Rússia viu os índices de desigualdade disparar. A outra é que os multimilionários que, desde essa altura, acumularam fortunas, puseram a maioria dos seus rendimentos abrigados em offshores.
Gabriel Zucman é um dos economistas norte-americanos que têm produzido abundante trabalho científico sobre a distribuição da riqueza e desigualdade no mundo e, esta quinta-feira, deixou na sua conta de Twitter, uma chamada de atenção para um estudo que publicou no final de 2017 com mais dois colegas europeus (Annette Alstadsætera e Niels Johannesen). Embora a descrição da metodologia e dos pressupostos dos cálculos só sejam acessíveis para entendidos, as conclusões são fáceis de perceber.
Primeira: a Rússia é um dos quatro países do mundo onde há mais dinheiro em offshores. Os economistas estimam que cerca de 9,8% do PIB mundial (o rendimento anual) esteja em offshores, mas há quatro Estados em que a percentagem está acima dos 50%. A lista é encabeçada pelos Emirados Árabes Unidos (73,1%), seguidos pela Venezuela (64,1%), a Arábia Saudita (56,2%) e, em quarto lugar, pela Rússia, onde o equivalente a 54,5% do rendimento gerado anualmente no país está abrigado em paraísos fiscais.
Segunda: sendo já muito expressivo, o apetite por offshores é especialmente acentuado entre os magnatas. Mais de metade do rendimento dos 0,01% mais ricos do país está colocada em paraísos fiscais, uma percentagem imbatível e que coloca a Rússia na liderança do ranking.
O trabalho já leva quatro anos, e os números usados não são propriamente frescos, mas as tendências mantêm pertinentes as sucessivas perguntas que lança nesta altura, em que o Ocidente avalia as respostas mais eficazes para condicionar Vladimir Putin: se “mais de metade da riqueza dos 0,01% dos russos está em offshores… os pacotes de sanções não deviam começar por congelar estes ativos?” “A União Europeia e os EUA atrever-se-ão a identificar, congelar e confiscar a riqueza em offshores dos ultra-ricos russos?”
Mais desigual que a China (mas taco a taco com os EUA)
Um outro trabalho, intitulado “Dos Soviets aos Oligarcas: desigualdade e propriedade na Rússia entre 1905 e 2016″, de Thomas Piketty e Filip Novokmet, conclui que a concentração de riqueza e de rendimento na Rússia foi bem mais acentuada do que, por exemplo, na China, que abraçou uma espécie de capitalismo de Estado, ou em outros países do leste.
Segundo os economistas, até 1990, os 10% da população com maior nível de rendimento, concentravam cerca de 20% do bolo total. Daí em diante passaram a concentrar mais de 45% – um valor que chega a superar o dos EUA, que é conhecido por ter grandes níveis de desigualdade. Colocando a lupa apenas sobre os 1% do topo da escala, a evolução é semelhante. Até 1990 tinham cerca de 6% do rendimento total, uma percentagem que foi crescendo ao longo dos anos, de tal modo que, de 2005 em diante, concentram entre 20 e 30%. Uma vez mais acima dos EUA de um cabaz de países de leste usados na análise (como a República Checa, Polónia e Hungria).
Quanto aos níveis de desigualdade da riqueza (que representa o património acumulado, e não apenas o rendimento) dá-se o mesmo. A partir de 1990, a riqueza privada na Rússia cresceu substancialmente: era de aproximadamente 170% do rendimento nacional em 1990 para, de 2005 em diante, se situar entre os 350% e os 420% do rendimento nacional. E passou a concentrar-se em poucas mãos. Da década de 2000 em diante, a Rússia anda taco a taco com os Estados Unidos, mas claramente acima da China, com os 1% mais ricos a concentrarem entre 40% e 45% da riqueza total do país.
E a riqueza privada colocada em offshores foi aumentando, ganhando um peso crescente entre os ativos detidos pelos privados.
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