Enquanto as marcas americanas tentam fazer do telemóvel o ponto de controlo de muitos outros dispositivos, a chinesa Huawei parece apostada em fazer o caminho inverso: um ano depois da estreia da primeira versão, a gigante chinesa deu o primeiro passo para o lançamento do sistema operativo HarmonyOS nos smartphones. A versão beta para programadores já começou a ser disponibilizada setembro, mas as estreias comerciais foram definidas tendo em conta as diferentes famílias tecnológicas: em abril prevê-se que o sistemas operativo comece a ser usado em gadgets, equipamentos industriais, domésticos ou vestíveis mais limitados, com memórias RAM de 128 MB a 4GB, e só em outubro de 2021 deverá fazer a estreia em smartphones com mais de 4GB de memória RAM. Nessa altura, a marca chinesa deixará de depender do Android, ou de qualquer outro sistema operativo criado nos EUA.
“Provavelmente no próximo ano, veremos no mercado telemóveis com HarmonyOS”, prometeu Richard Yu, responsável pela área de consumo da Huawei, durante a Conferência de Programadores da Huawei, que se realizou esta quinta-feira na cidade de Dongguan.
Apesar de apostar num sistema operativo próprio, a Huawei não descura todos os dispositivos que vendeu ao longo dos anos com sistemas operativos Android, da Google. Atualmente, já há uma versão beta da EMUI 11, uma adaptação do Android para os dispositivos da marca, que vai ser disponibilizada gradualmente aos diferentes equipamentos, e que deverá arrancar com atualizações nos modelos mais recentes.
O primeiro executivo da marca chinesa a subir ao palco não evitou de abordar a interdição comercial a que a marca chinesa foi sujeita nos EUA – mas deu o mote para reverter a impossibilidade de uso de tecnologias americanas num trunfo que pode ser usado mesmo fora das fronteiras chinesas.
“Queremos ver mais TikToks no mercado”, disse Yu em jeito de incentivo para a plateia de programadores chineses, numa alusão à rede social de origem chinesa cuja unidade americana que está em vias de ser vendida por imposição da interdição comercial em curso. A frase deixou no ar a provocação para os americanos que seguramente acompanharam o evento e o desejo expresso de seguida funcionou como a solução que provavelmente a marca chinesa tenderá a explorar nos próximos tempos para atrair programadores e empresas ocidentais. “Temos a ambição de ajudar programadores estrangeiros a entrar no mercado chinês”, garantiu a Richard Yu.
O atrativo comercial é notório: depois de décadas de restrições, negociações e cedências políticas e comerciais para garantirem a entrada no mercado chinês, empresas e cidadãos americanos ficaram impedidos de colaborar com a Huawei (e a ZTE… e eventualmente a produtora de chips SMIC e outras marcas chinesas que poderão seguir-se entretanto), mas a Huawei propõe-se a mostrar que há mais vida no mundo do software para lá do eldorado americano, funcionando como a porta de entrada que faltava na grande muralha que a China ainda aplica ao mercado do software e da Internet.
Os números do HarmonyOS, que tem vindo a fazer o seu percurso em sensores, gadgets e televisores mais limitados, ainda poderão estar longe daqueles que o Android da Google, ou o iOS da Apple já alcançam nos dias de hoje, mas a marca chinesa tem ainda alguns números em carteira que lhe alimentam a esperança: em 2019, a marca vendeu 240 milhões de telemóveis, apesar das restrições impostas nos EUA, que obrigaram à renovação de antigas versões oficiais do Android que a Google cede aos fabricantes de telemóveis ou, mesmo, ao uso da versão do Android que a Google disponibiliza livremente a qualquer programador – e que não dispõe de grande parte das tecnologias da versão Android oficial (que, por coincidência ou não, estreou esta quarta feira na 11ª versão, pelas mãos da Google).
Com estes números, não seria de estranhar que a gigante chinesa apresentasse um primeiro feito na área das apps: hoje, a Huawei reivindica o terceiro lugar nos ecossistemas de aplicações para telemóveis (atrás da Google Play e da App Store da Apple). A Huawei conta com 490 milhões de utilizadores na loja conhecida por AppGallery, que já distribui mais de 96 mil apps. No total, há 700 milhões de pessoas que usam dispositivos móveis da Huawei.
No desfile de executivos e discursos que deram a conhecer o futuro próximo da Huawei, o foco manteve-se centrado nas arquiteturas distribuídas: são estas arquiteturas que permitem à marca chinesa garantir que o HarmonyOS, depois de um primeiro percurso comercial junto de equipamentos domésticos ou industriais, pode agora acomodar novos membros à família tecnológica: os jás citados telemóveis surgem como principal prioridade estratégica, mas os responsáveis da marca chinesa também confirmaram ainda a intenção de estender o sistema operativo aos equipamentos vestíveis (os wearables) e aos tablets.
Além do contexto em que cada dispositivo é usado, o sistema operativo da Huawei, ao funcionar numa arquitetura distribuída, permite tirar partido da articulação das capacidades computacionais de diferentes equipamentos para poupar energia com o processamento de dados, ou para partilhar experiências e sessões de uso entre mais que um equipamento.
Por mais de uma vez, a segurança foi mencionada. Ao contrário de outros eventos realizados na China natal, desta vez, a marca chinesa sabia que estava a ser observada – até porque, além dos concorrentes americanos, muitos programadores, produtores de software e decisores políticos ocidentais terão assistido ao evento a fim de descortinar potenciais ameaças ou... oportunidades de negócio.
“Somos a única marca que tem um certificado CC EAL 5+”, garantiu Wang Chenglu, presidente do Departamento de Engenharia de Software, sobre a segurança alcançada pelo ecossistema da Huawei, sem deixar de lembrar que o Windows, que hoje é usado na maioria dos computadores pessoais, tem um certificado de segurança inferior. E neste plano, o braço de ferro com a estratégia de interdição americana ganhou ainda mais um ponto de interesse: a Huawei está apostada em partilhar esta segurança com os parceiros que pretendam trabalhar no seu ecossistema.
Quem esteve na edição de 2019 da Web Summit, em Lisboa, facilmente pôde reconhecer no evento desta quinta feira em Dongguan um segundo capítulo da estratégia da marca chinesa com vista a acabar com a dependência do software americano. De súbito o evento realizado em Portugal passou a ter uma presença de peso da Huawei sem paralelo com as edições de anos anteriores. O caso não era para menos: boa parte da sobrevivência da Huawei enquanto marca global depende da capacidade de atrair produtores de aplicações e funcionalidades. E por isso houve uma aposta redobrada na Web Summit, com o objetivo de lançar novos incentivos para programadores e produtoras de software.
Passou quase um ano e a marca chinesa dá ares de ter feito o trabalho de casa – sem esquecer as mais recentes movimentações no mercado ocidental, que levaram à expulsão do Fortnite das lojas App Store e da Google Play devido a desinteligências relacionadas com a partilha de receitas. Wang Yanmin, presidente das parcerias globais na Área de Negócio de Consumo da Huawei, não escondeu que tem pela frente o grande desafio de convencer muitos milhões de chineses e não chineses a preferirem a AppGallery em detrimento da App Store e da Google Play – e por isso não se coibiu de dar a entender que a Huawei está disposta a abdicar de parte dos proventos para atrair os produtores de apps - ou pelo menos aqueles que são mais procurados pelos consumidores.
“Podemos disponibilizar aos programadores um ecossistema justo e aberto”, começou por dizer em jeito de alfinetada não declarada ao facto de muitos produtores de apps não aceitarem as fatias de receitas exigidas pelas lojas da Apple e da Google.
“A Huawei está disposta a partilhar uma maior fatia de receitas com os produtores de software, que vão poder usar parte das receitas para captar mais utilizadores”, acrescentou depois o mesmo executivo chinês, possivelmente esperançoso de que os cifrões convençam os produtores de apps a mudarem de paragens – e obriguem, indiretamente, as duas maiores lojas de aplicações da atualidade a reverem a partilha de receitas, caso a AppGallery consiga realmente ter sucesso e passe a marcar as tendências no mercado global.
As demonstrações de telemóveis que se conectam a eletrodomésticos ou que enveredam automaticamente pelos comandos de voz quando entram num um carro podem ter enchido os olhos dos aficionados das novidades tecnológicas – mas a Huawei não se esqueceu de fechar o ciclo e mostrar que aprendeu a lição com os antigos parceiros americanos, que foram convertidos em inimigos por força da interdição comercial imposta pelas autoridades americanas: além da aposta na partilha de um kit de inteligência artificial (ou aprendizagem máquina), a gigante chinesa anunciou um serviço que agrega diferentes comunicações sem fios para efeitos de autenticação ou conexão com outros dispositivos, e ainda um serviço de localização e navegação para espaços exteriores e interiores.
Os aficionados da Google podem ter tido uma sensação de dejá vu, mas foi necessário mais alguns minutos para vislumbrar a cereja no topo do bolo: A Huawei criou um motor de busca especializado para os telemóveis. “E vamos disponibilizá-lo no mercado global”, prometeu Wang Chenglu.
Não se prevê o fim da interdição da Huawei nos EUA. Pelo que será o mercado global que vai decidir de que lado da barricada vai querer estar nos próximos tempos.