Economia

Proteção de Dados não dá luz verde ao mecanismo proposto pelo Governo para o envio ao Fisco de dados sensíveis das empresas

Parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados aponta falhas no projeto de decreto-lei que estabelece os mecanismos para a submissão à Autoridade Tributária do ficheiro de auditoria tributária SAF-T – que agrega dados da contabilidade das empresas, incluindo informação pessoal sobre clientes

A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) considera que a solução proposta pelo Governo para o envio pelos contribuintes do ficheiro SAF-T, que agrega os dados da contabilidade das empresas, para a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) tem falhas. E sugere correções ao projeto de decreto-lei – o pedido de parecer prévio foi feito pelo secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes –, que vai definir as futuras regras da submissão deste ficheiro.

Em causa está a necessidade de acautelar que dados sensíveis sobre clientes, como informação relativa a saúde, não são acedidos pelo Fisco e que a lei da proteção de dados é cumprida.

Para a CNPD, as ferramentas sugeridas pelo Executivo não garantem a 100% o cumprimento da lei. O SAF-T agrega informação pessoal, sobretudo relativa a clientes (particulares) “reveladora de importantes dimensões da vida privada, podendo até envolver dados especialmente sensíveis, como sejam os relativos à saúde contidos nas faturas relativas à prestação de consultas, cuidados médicos ou de realização de exames de diagnóstico”, faz notar a CNPD no parecer com data de 15 de junho.

A CNPD não questiona que a AT disponha destes dados no âmbito da sua atividade inspetiva, mas tal não pode acontecer “no exercício das funções de liquidação de impostos e com o objetivo de simplificação do cumprimento das obrigações” fiscais, pois neste caso “esse acesso não se revela imprescindível e é, manifestamente, excessivo”.

Exclusão dos dados não pode estar nas mãos das empresas

Os problemas sinalizados pela CNPD estão, precisamente, na solução encontrada pelo Executivo para garantir que a AT não acede a mais dados do que “os estritamente necessários para a verificação das obrigações englobadas pela IES”. O ónus de ocultar a informação que não é pertinente ou excessiva está colocado do lado das empresas que submetem o SAF-T através de um mecanismo de descaracterização dos campos relativos a descrições e dados pessoais, via a encriptação que estará a cargo da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM). Para a CNPD a decisão de excluir a informação, não pode estar dependente da vontade dos contribuintes sujeitos ao envio do SAF-T, facto que na opinião deste organismo “é especialmente surpreendente quando os dados pessoais dizem, sobretudo, respeito a terceiros (como fornecedores e clientes)”. “Não se trata, pois, de remeter para a vontade ou consentimento do titular dos dados pessoais a legitimação do acesso aos dados pela AT, mas de deixar ao critério de um sujeito jurídico (contribuinte) a decisão sobre se os dados pessoais de terceiros são comunicados à AT”, faz notar o parecer.

A Comissão salienta ainda que as empresas tenham que contratar o serviço da INCM, “o qual terá um custo que, como decorre do projeto, tem de ser suportado pelo sujeito passivo”. “Apesar da CNPD desconhecer o custo dessa operação, admite que o mesmo possa pesar na decisão de proteção efetiva de dados pessoais”, alerta a instituição.

Por tudo isto, a CNPD considera que a solução apresentada é contrária às leis em vigor nomeadamente por não impor o dever de exclusão dos dados sensíveis, tornando-o uma opção, possibilidade que não garante “a tutela dos direitos fundamentais ao respeito pela vida privada e à proteção de dados pessoais”, além de que viola “o princípio da minimização dos dados pessoais” e contraria “a obrigação de proteção de dados pessoais por defeito”, ambos previstos no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados.

Para o Governo ter luz verde da CNPD tem que criar um mecanismo que exclua, de facto, os dados em causa.

Envio do SAF-T alvo de críticas

O envio do SAF-T pelas empresas para a AT decorre de alterações que foram introduzidas pelo Executivo e que fazem depender o cumprimento da apresentação da Informação Empresarial Simplificada (IES) da submissão prévia deste ficheiro normalizado de auditoria tributária que diz respeito à contabilidade. Com as mudanças o Governo pretende simplificar o preenchimento da IES, já que alguns dos campos do novo modelo de submissão da declaração passam a estar pré-preenchidos pelos serviços de Finanças com base na informação previamente recolhida no SAF-T.

A nova lei, publicada em setembro de 2019, também definiu regras para garantir que o Fisco não acede a informação desnecessária ou excessiva. Ficou, então, estabelecido que os campos de dados de menor relevância ou de desproporcionalidade, nomeadamente dados que coloquem em causa deveres de sigilo a que os contribuintes estejam sujeitos, fossem excluídos. É sobre os procedimentos relativos aos campos de dados que constam no SAF-T que incide a proposta de regulamentação do Governo remetida à CNPD.

Recorde-se que o envio do SAF-T para o fisco gerou bastantes críticas junto da comunidade de contabilistas e do tecido empresarial português. No verão de 2019, por exemplo, a Associação Nacional Contabilistas apontou que estava em causa não só a devassa da vida das empresas, que ficam com o negócio exposto, mas de toda a sociedade portuguesa, mesmo tendo em conta que alguns dados venham a ser encriptados.

Na mesma altura, quatro confederações patronais – Confederação dos Agricultores de Portugal, Confederação do Comércio e Serviços de Portugal, Confederação Empresarial de Portugal e Confederação do Turismo de Portugal – escreveram uma carta ao primeiro-ministro, António Costa, a manifestar a sua discordância, apreensão e a pedir mais tempo de adaptação no que respeita ao envio para o Fisco do SAF-T.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: ASSantos@expresso.impresa.pt

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