Economia

Agenda digital acelerada

Para muitos alunos que não tinham computadores em casa, a telescola acabou por ser a forma de aprenderem enquanto as escolas estiveram encerradas
Para muitos alunos que não tinham computadores em casa, a telescola acabou por ser a forma de aprenderem enquanto as escolas estiveram encerradas
Nuno Botelho

Projetos Expresso. Educação. Ministro lembra que a economia digital já estava nos planos do Governo. Covid-19 acabou por adiantar o programa

André Rito

Há 10 anos, Portugal tinha uma taxa de abandono escolar precoce na ordem dos 30,9%. Hoje esse número está nos 10,6%, um dado acompanhado pelos resultados do principal relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Considerado um caso de sucesso em 2019, graças aos números alcançados nas três áreas avaliadas pelo PISA (Programme for International Students Assessment) — leitura, matemática e ciências —, a chegada da pandemia trocou as voltas a alunos, professores e governantes. Mas, acima de tudo, colocou à prova um modelo de ensino remoto que ainda estava no papel.

“Nos últimos quatro anos conseguimos baixar o abandono precoce de 14% para 10%, em convergência com os números da Europa”, disse o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, durante o debate promovido esta semana pelo Expresso e pelo Banco Santander, integrado no ciclo de conferências “Preparar o Futuro”. “O que se segue? Um dos pontos é adaptar o ensino à distância, a transição digital e agenda digital para a Educação, que já estava no Programa do Governo, para aumentar a literacia digital”, explicou o ministro, salvaguardando que “a existência de equipamentos para todos os alunos tem de ser uma certeza”.

“O desígnio deste ensino à distância foi não deixar nenhum estudante para trás. Agora temos de trabalhar para que no próximo ano letivo possamos recuperar as aprendizagens”, afirmou Tiago Brandão Rodrigues, levantando a questão cuja resposta ninguém pode dar de forma inequívoca: em setembro, os alunos irão regressar à escola?

“O grande desafio é assegurar que o digital funciona como forma de garantir o distanciamento social na escola”, acredita o reitor da Nova School of Business, Daniel Traça. “Há competências que não se ensinam à distância, como a criatividade, capacidade de colaborar, coisas que o mercado hoje exige. É preciso voltar à escola. O digital vai ter um papel muito importante para ajudar professores e alunos na sala de aula, como um complemento à experiência em sala, um modelo híbrido, para que o trabalho em casa seja fonte de maior aprendizagem. Trata-se de um mercado novo, que será benéfico para desenvolver os nossos alunos e mais propício às expectativas de hoje.”

Nuno Crato, ex-ministro e atual presidente da Iniciativa Educação, dá prioridade ao investimento “não material”. “Não há dúvida de que escolas, professores, pais e alunos responderam com grande dedicação, e isso permitiu que as atividades letivas continuassem”, referiu, considerando útil a aprendizagem resultante da pandemia. “Teremos um maior domínio das tecnologias de comunicação e de ensino online, mas o ensino, no essencial, não muda. Nem deve mudar.” O futuro passa por “investir num bom currículo, exigente, que chame os alunos ao século XXI, bons manuais escolares, avaliação frequente e apoio tecnológico”.

As competências digitais — incluindo a digitalização das escolas — constam do Programa do Governo, que defende a “articulação entre as ofertas e a promoção” dessas competências entre alunos e professores. “É preciso acelerar o processo de digitalização das nossas escolas”, lê-se no Programa, que contempla a “generalização das competências digitais de alunos e professores” e a aposta na digitalização dos manuais escolares e outros instrumentos pedagógicos.

“Relatórios internacionais dizem que estes programas das escolas têm tido impactos positivos, nem sempre evidentes a curto prazo, mas que revelaram um aspeto positivo com este surto: os alunos tiveram de se ambientar ao ensino à distância, a uma aprendizagem acelerada”, afirmou Brandão Rodrigues. O Programa do Executivo prevê um plano integrado e de qualificações, aumento da conectividade das escolas no acesso à internet, entre outras medidas.

Arlindo Oliveira, professor do Instituto Superior Técnico e diretor do INESC, rejeita mudanças estruturais no sistema de ensino provocadas pela pandemia: “Não vai ser uma revolução fundamental. O contacto é muito importante no ensino. Daqui a quatro anos, quando olharmos para trás, vamos ver isto de forma diferente”, acredita, embora considere que a pandemia “acelerou as competências tecnológicas”, facilitou o ensino à distância, mas não vai mudar um negócio que se mantém “há 500 anos: continua a basear-se num professor em frente a dezenas de alunos”.

Com o rumo da pandemia ainda incerto, Isabel Alçada, ex-ministra da Educação e conselheira do Presidente da República, é cautelosa ao perspetivar o próximo ano letivo. “Precisamos de ter a possibilidade de reagir a uma nova emergência, mas também estudar as condições que assegurem a segurança e as possibilidades de ter uma aula presencial. Não podemos desdobrar turmas e ter o dobro dos professores. Exige recursos extremos.” Por outro lado, chamou a atenção para um número que tem vindo a aumentar: Portugal tem hoje um rácio de um computador por 4,7 alunos. “Em 2011 este valor situava-se nos 2,1%. Muitas famílias não dispõem de equipamentos nem de acesso à internet.”

A ex-ministra sugere a criação de programas de ação social escolar que incluam a oferta ou empréstimo destes equipamentos para assegurar a equidade e atingir duas “grandes prioridades” da Educação: garantir 12 anos de escolaridade a todos os jovens e ampliar a qualificação de todos os portugueses.

Ensino Onde precisamos investir? O que temos de acautelar?

Programa do Governo já contemplava aposta na transição digital e no ensino, por exemplo, de robótica

A pandemia ainda não tinha chegado à Europa quando, em Portugal, se discutia o Orçamento do Estado. Com uma fatia de €6,5 mil milhões, o Ministério da Educação anunciava um reforço “pelo quinto ano consecutivo”. “Uma subida de 17,6%” desde 2013, segundo contas do gabinete de Tiago Brandão Rodrigues, justificada “pelas despesas com pessoal (que subiram 3,1%) e pela aquisição de bens e serviços correntes (6,2%)”. O surto da covid-19, porém, impôs encerramento de todas as escolas, a 16 de março, e veio acelerar um processo de digitalização previsto até ao final da legislatura, em 2023.

Uma “mudança drástica”, disse o ministro durante o debate, à qual o sistema de ensino português respondeu “com maturidade e resiliência”. Com perto de dois milhões de alunos em casa, a telescola e o ensino à distância têm sido a solução para um tempo de grande imprevisibilidade, já com o próximo ano letivo à vista. Daniel Traça, reitor da Nova School of Business, acredita num modelo híbrido. “O ensino presencial é fundamental, mas o distanciamento vai assegurar que não haverá propagação do vírus. O próximo ano será neste equilíbrio.”

O programa do Executivo para a Educação já contemplava a aposta na digitalização e na transição digital, que passará sobretudo por “um plano integrado e de qualificações” e por “aumentar a conectividade de acesso das escolas à internet”. “Dotá-las de recursos que promovam a integração transversal das tecnologias nas diferentes áreas curriculares, a utilização de recursos educativos digitais e o ensino do código e da robótica.”

€6,5
mil milhões foi a verba prevista para a Educação no Orçamento do Estado de 2020. Um aumento de 1,5% em relação ao ano anterior

Futuro O que muda na nossa Educação com esta pandemia?

Especialistas defendem sistema misto, aulas presenciais e remotas, o que exigirá investimento em tecnologia

Como será o próximo ano letivo? É a pergunta que todos querem ver respondida. Para Isabel Alçada, ex-ministra da Educação, professora universitária e atual consultora do Presidente da República, o surto de covid-19 “mostrou desigualdades”. “Vemos que há famílias sem recursos digitais. As escolas precisam de estar apetrechadas com estes equipamentos para serem utilizados no desenvolvimento da literacia digital”, afirmou, reforçando a importância de contrariar as estatísticas: “Até 2011 tínhamos um rácio de computadores por aluno de 2,1, agora é de 4,7. Ou seja, houve um retrocesso na disponibilidade de recursos digitais.” De acordo com os últimos dados da Direção-Geral de Estatísticas em Educação, as escolas públicas portuguesas têm um parque informático com mais de 271 mil computadores. Sobre o próximo ano letivo, vários oradores consideraram a necessidade de um sistema misto, de aulas presenciais e remotas, o que poderá exigir mais investimento em tecnologia. Nuno Crato, ex-ministro e atual presidente da Iniciativa Educação, mantém que “o ensino presencial é insubstituível”. “A lição essencial que retiro das modificações no ensino, na sequência desta pandemia, é a grande virtude do ensino presencial.”

4,7
é o número médio de alunos por cada computador disponível nas escolas públicas portuguesas

Trabalho De que competências precisamos? E que mercado teremos?

A curto e médio prazo, as empresas poderão reduzir a dependência dos fatores imprevisíveis e apostar na automação e digitalização

A literacia digital é assumida como uma prioridade pelo programa do Governo para a Educação. “Equipamentos e acessibilidade a todas as escolas e alunos tem de ser uma certeza, mas ainda temos muito caminho pela frente”, disse o ministro Tiago Brandão Rodrigues na sua intervenção.

O professor do IST Arlindo Oliveira vai por outro caminho: “A economia não foi feita por engenheiros. É muito frágil. A sociedade resiste, mas a economia colapsa. Estamos dois meses em casa e de repente temos uma contração enorme, que pode causar alterações profundas nas empresas e na sociedade”, afirmou no debate.

“Parece-me óbvio que a curto e médio prazo as empresas se irão esforçar por reduzir ao máximo a dependência dos fatores imprevisíveis, e esse é o fator humano. Vão apostar na automação e digitalização, de redução de todas as atividades que são intensivas em termos de mão de obra e pessoas.” A consequência, acredita, será uma elevada procura destas competências. “Todas as que sejam bem adequadas a este esforço de digitalização e na automação irão estar em elevada procura. Plataformas e mecanismos.”

20
mil é o número estimado em falta de profissionais de digitalização e automação. Na Europa, o número atinge um milhão

Frases do debate

“O meio não é a mensagem. O bom ensino é o que tem um currículo estruturado, não uma coleção de atividades. Deve ter metas claras, com bons manuais escolares, cuja importância ficou reforçada neste tempo, assim como a liderança do professor. O computador 
é um auxiliar, mas quase tudo se torna mais difícil à distância”
Nuno Crato
Presidente do Iniciativa Educação e ex-ministro da Educação

“Durante o estado de emergência a solução foi enviar todos os alunos para casa e promover o ensino à distância. O que se aprendeu este ano e como podemos pensar no próximo, numa lógica de proteção da saúde, assegurando o distanciamento social? O próximo ano será num sistema híbrido”
Daniel Traça
Diretor da Nova School of Business and Economics

“Quando apareceram os livros, as previsões eram de que os professores iriam tornar-se inúteis. O mesmo sucedeu agora com o ensino à distância. As pessoas têm tendência a subestimar, mas a tecnologia será sempre um complemento útil, e espero que o nosso sistema de ensino tenha capacidade para aprender com estas alterações e usar estas tecnologias”
Arlindo Oliveira
Professor do IST e diretor do INESC

Textos originalmente publicados no Expresso de 30 de maio de 2020

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