Economia

Hospitais públicos devem 1200 milhões em medicamentos e dispositivos médicos

Problema crónico dos pagamentos fora do prazo no Serviço Nacional de Saúde não está a ser resolvido como prometido pelo Governo. Faturas vencidas voltam a subir em setembro, mas o atual Executivo diz estar a “acautelar os valores dos pagamentos em atraso no mais breve horizonte temporal possível”

Os hospitais públicos estão a acumular faturas por pagar à indústria farmacêutica e às empresas de dispositivos médicos. Os dados mais recentes, de setembro, mostram que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não está a saldar as dívidas a estes fornecedores, que têm a receber cerca de 1200 milhões de euros. O Ministério da Saúde garante ao Expresso que está a trabalhar em conjunto com as Finanças para “acautelar” os pagamentos em atraso com a maior rapidez possível, mas dentro do orçamentado.

Sem surpresas, a maior fatia diz respeito a medicamentos. Segundo dados da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), a dívida do SNS aos laboratórios soma 947 milhões de euros (este valor inclui todas as faturas emitidas pelas empresas associadas, mesmo que estejam dentro do prazo para pagamento), mais 37,1 milhões de euros face a agosto. A trajetória tem sido ascendente desde o início do ano (em janeiro este valor era de 626,2 milhões de euros), apenas interrompida em julho. O prazo médio de recebimento está nos 335 dias, quando em janeiro era de 227 dias.

Do total de 947 milhões de euros, 667,8 milhões de euros são dívida vencida, ou seja, foi ultrapassado o prazo acordado entre as partes para o pagamento. Note-se que a Apifarma contabiliza os valores reportados pelas suas associadas, o que não representa todo o universo de empresas de medicamentos que fornecem o Estado. De acordo com a Apifarma, “o valor da dívida é obtido através de um inquérito realizado a 69 empresas associadas”, sendo contabilizadas 62 farmacêuticas e sete empresas de diagnóstico in vitro, cuja representatividade é de 83,3% e de 65%, respetivamente. Ou seja, o valor das faturas por saldar será superior.

O mesmo acontece com as dívidas relativas a dispositivos médicos. Segundo dados da Associação Portuguesa das Empresas de Dispositivos Médicos (Apormed) os hospitais deviam 249,8 milhões de euros (mais 6 milhões face a agosto) ao sector, dos quais 151,7 milhões de euros estavam por pagar há mais de 90 dias. Mas a Apormed representa cerca de 75% das aquisições de dispositivos médicos por parte dos hospitais públicos, ou seja, também os números das faturas por saldar serão inferiores à realidade.

“Durante o primeiro trimestre, verificou-se uma diminuição atingindo-se, em março, 206 milhões de euros, mas a partir de abril a dívida subiu sempre, com exceção do mês de julho”, especifica ao Expresso o secretário-geral da Apormed, João Gonçalves. Em média, estes fornecedores têm que esperar 321 dias para receberem pelo material vendido aos hospitais públicos.

O valor global das dívidas de medicamentos e de dispositivos médicos indicados ao Expresso pelo Ministério da Saúde, reportados pelas entidades do SNS à ACSS – Administração Central do Sistema de Saúde, é, de facto, ligeiramente superior aos números da Apifarma e da Apormed. No total, segundo o Governo, os hospitais públicos deviam, em setembro, 1277,9 milhões de euros a estes fornecedores.

A administração pública distingue entre dívida vencida (ultrapassou o prazo de pagamento) e pagamentos em atraso (são os chamados arrears, que contabilizam as faturas por liquidar ultrapassados 90 dias do prazo para pagamento) que no caso das farmacêuticas eram de 551,5 milhões de euros e de 355 milhões de euros, respetivamente – menos do que o apurado pela Apifarma. No caso dos dispositivos médicos, a dívida vencida estava, em setembro, nos 226,4 milhões, e os pagamentos em atraso somavam 145 milhões de euros – bem acima dos valores apurados pela Apormed.

Em todo o caso, nos dados enviados ao Expresso, o Ministério da Saúde menciona que dizem respeito ao universo de associados da Apifarma e da Apormed.

O Executivo faz notar que “o valor da dívida vencida reportada pelas entidades do SNS (hospitais, Centros Hospitalares, Unidades Locais de Saúde) aos associados da Apifarma (indústria farmacêutica), era em setembro de 2019 inferior em menos 20% face ao período homólogo. Igualmente, e no que diz respeito aos associados da Apormed (dispositivos médicos), se verifica para o mesmo período temporal um decréscimo 6%”. No caso dos pagamentos em atraso “os valores relativos à Apifarma eram, em setembro de 2019, inferiores em menos 27% face ao período homólogo. Igualmente, e no que diz respeito aos associados da Apormed, se verifica para o mesmo período temporal um decréscimo dos pagamentos em atraso de 14%”. Uma variação que, garante a tutela, “evidencia o esforço empreendido na recuperação dos pagamentos em atraso”.

O Ministério da Saúde refere ainda que se “encontra a trabalhar em conjunto com o Ministério das Finanças, no sentido de se acautelar os valores dos pagamentos em atraso no mais breve horizonte temporal possível, tendo em consideração, necessariamente os critérios orçamentais estabelecidos”.

Dependência dos hospitais públicos

Já João Gonçalves frisa que “os elevados atrasos nos pagamentos dos hospitais públicos às empresas de dispositivos médicos tem um impacto muito negativo na gestão de tesouraria, tanto mais que se trata de um sector que é constituído em mais de 90% por micro, pequenas e médias empresas”.

Uma situação “agravada” graças à grande dependência dos hospitais públicos que representam, em média, cerca de 70% da faturação global. “Para colmatarem os constantes défices de tesouraria, as empresas têm que se financiar ou contraindo empréstimos à banca ou cedendo os seus créditos (venda de faturas) a empresas de factoring”, o que implicam mais custos para a atividade.

O responsável sublinha que é uma “triste realidade de incumprimento crónico contratual por parte dos hospitais, que não é atrativa para os agentes económicos uma vez que o clima de incerteza prejudica o incentivo ao investimento por parte das empresas”. E assim se perde “a criação de postos de trabalho qualificados e a implementação de projetos de criação de valor”. E dá o exemplo de outros países com realidades semelhantes à de Portugal que “conseguiram mitigar, os casos de Itália e Grécia, ou resolver esta a situação, como é exemplo da vizinha Espanha em que os hospitais públicos pagam a 95 dias aos seus fornecedores”.

A Apormed considera que é necessária vontade política do Governo, nomeadamente do Ministério da Saúde que é o credor mas também do Ministério da Economia (pelo “impacto nefasto” nas empresas).

Também a Apifarma sinaliza os danos ao nível do investimento e da atratividade de Portugal na área da saúde, por causa da fama de mau pagador. “A dinâmica da dívida aos fornecedores do SNS não deixa de ser um importante sinal para os agentes económicos pois impacta a competitividade e a confiança na economia portuguesa e, consequentemente, a capacidade de Portugal atrair potenciais investidores internacionais na área da ciências da vida. Este é um dos indicadores que acompanhamos com particular atenção”, menciona ao Expresso o presidente da associação, João Almeida Lopes.

Na sua opinião, “falta instituir uma cultura de pagamento ‘a tempo e horas’, como defende a diretiva europeia dos atrasos de pagamento, sob pena de gerar nova dívida”. E problema deve ser combatido na sua raiz, ou seja, ao nível do orçamento destinado aos cuidados de saúde. “É necessário começar pelo princípio. A saúde em Portugal não escapará à situação de frágil sustentabilidade, falta de equidade e eterna dívida aos fornecedores, enquanto mantivermos um nível de financiamento público da saúde muito abaixo das necessidades dos portugueses”.

É que, aponta João Almeida Lopes, “Portugal é dos países europeus onde é menor o investimento em saúde, quer em percentagem do Produto Interno Bruto, quer no total da despesa do Estado. Temos de nos aproximar do valor médio dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico”. Por isso defende, a existência de “orçamentos plurianuais” na saúde porque, assim, “seria possível planear e prever o real financiamento das linhas de atuação do SNS, conferindo estabilidade ao orçamento do SNS e pondo fim ao conceito de orçamentos suplementares ou tentações de suborçamentação”.

A Apifarma lembra ainda que o anterior Governo, “no final de 2018, encetou um esforço para redução da dívida e inclusivamente anunciou a eliminação da dívida até ao final deste ano, reconhecendo o contributo essencial dos fornecedores do Estado para a sustentabilidade do SNS e para assegurar a prestação dos cuidados de saúde aos portugueses”.

Reforços financeiros às pinguinhas

Aliás, em março de 2018, o ministro das Finanças, Mário Centeno disse que queria acabar com os ciclos de endividamento no SNS por ocasião da cerimónia de apresentação pública da Estrutura de Missão para a Sustentabilidade do Programa Orçamental da Saúde.

Entretanto, à semelhança do que tem vindo a acontecer nos últimos anos, o problema tem sido gerido com reforços financeiros.

Em fevereiro, o Governo aprovou um reforço de 282 milhões de euros para pagar dívidas em atraso a mais de 90 dias e, em junho, houve mais uma injeção de 152 milhões de euros. Na altura, o então secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Francisco Ramos, afirmou que se estava na rota da “redução dos pagamentos em atrasos em 2019 e chegar ao fim do ano a zero ou muito próximo de zero”. Promessa que à luz do somatório atual de dívidas próximas de 1200 milhões parece estar longe de se concretizar.

Ambos os reforços, de fevereiro e de junho, fazem parte de um plano de liquidação de pagamentos em atraso por parte do SNS, que foi formalizado em maio de 2019, por despacho conjunto dos gabinetes dos secretários de Estado do Orçamento, do Tesouro e Adjunto e da Saúde. No documento publicado em Diário da República ficou previsto pagar, ainda este ano, 445 milhões de euros a fornecedores externos, com a maior parte da dívida a ser saldada até 2020.

(Artigo atualizado às 21:12 com os números e a posição do Ministério da Saúde)

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