Comenda: Berardo "abnegado" defende-se com Mourinho, Ronaldo e muitos outros condecorados
ANTÓNIO COTRIM
Joe Berardo respondeu à "nota de culpa" - que o próprio coloca entre aspas - para não perder as condecorações, classificando-a como ausente de factos. Assume que "não é dotado de especiais e elevadas capacidades oratórias e retóricas" e que isso se verificou na audição no inquérito parlamentar à CGD. Diz que houve condenados que não foram alvo do mesmo processo. A palavra será dada ao Conselho liderado por Manuela Ferreira Leite
O mesmo José Berardo que declarou que até seria um “descanso” se lhe levassem as comendas é o mesmo que agora, num documento dirigido ao Palácio de Belém, se assume como o “abnegado”, que distribui bolsas a jovens madeirenses, e que se defende da possibilidade de vir a perder as comendas honoríficas que recebeu, sendo que uma delas lhe dá o título de comendador.
Para isso, a defesa de Joe Berardo invoca os casos de José Mourinho e Cristiano Ronaldo como defesa para não perder as condecorações, numa carta enviada no fim de setembro a Mota Amaral, o instrutor do processo disciplinar no âmbito do Conselho das Ordens Nacionais. João Pereira Coutinho é também visado, mas há muitos outros nomes que podem encaixar nas descrições, desde Jorge Jardim Gonçalves a Zeinal Bava.
Na carta, noticiada inicialmente pelo Eco e a que o Expresso também teve acesso, a defesa do empresário madeirense aponta seis casos de cidadãos (sem os identificar) que não perderam as condecorações, apesar de terem estado a braços com a Justiça e avança com argumentos para defender a tese de que deve manter as comendas que recebeu nos mandatos de Ramalho Eanes e Jorge Sampaio.
A carta data de 30 de setembro – o Expresso tinha já noticiado a sua entrada. Agora, Mota Amaral vai analisá-la e depois irá fazer subir o processo ao Conselho das Ordens Honoríficas, liderado por Manuela Ferreira Leite.
O advogado de Berardo, Paulo Saragoça da Matta, classifica a atuação disciplinar "de singular" quanto à finalidade e fundamento, “porquanto se desconhece que outros cidadãos em idênticas ou mais graves situações tenham sido objeto de processos similares”.
É numa nota de rodapé que o advogado faz a referência a seis casos, “por serem de conhecimento público”, mas sem identificá-los. Não há nomes “por lisura”.
São seis os casos: “Processos que redundaram na indiciação dos visados, por corrupção ativa, passiva e participação económica em negócio”; “Processos penais tributários, em jurisdição estrangeira, que culminaram com a condenação do arguido por fraude fiscal”; “Processos que tiveram como objeto a suposta prática de crimes de natureza sexual”; “Processo que tem por objeto a prática (suposta) de crimes de branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada e corrupção passiva e tráfico de influências”; “Perdões de dívida em montante superior a 100 milhões de euros”; “Processos que culminaram na inibição para o exercício de cargos em instituições financeiras e na condenação do arguido por crime de manipulação de mercado”.
Mourinho e Ronaldo encaixam no ponto dos crimes tributários no estrangeiro. O CR7 foi condecorado em 2004 como Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Dez anos depois, tornou-se Grande Oficial da mesma ordem e em 2016 recebeu uma condecoração da Ordem de Mérito. Só que, para encerrar o processo aberto por fuga aos impostos, o Bola de Ouro foi condenado em Espanha a uma pena suspensa de 23 meses e uma multa de 18,8 milhões de euros.
Da mesma forma, o treinador José Mourinho foi condenado a um ano de pena suspensa e pagar uma multa em torno de 2 milhões de euros devido aos crimes de fraude fiscal. Tornou-se Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique em 2005.
Tiago Miranda
Pereira Coutinho, Zeinal Bava, Valentim Loureiro e Jardim Gonçalves?
E quando a carta refere a perdões de dívida acima dos 100 milhões, a defesa de Berardo estará, como adiantou inicialmente o Eco, a referir-se a João Pereira Coutinho. Em causa está o antigo detentor da (SIVA), vendida ao conglomerado VW, numa operação em que se deu um perdão de 116 milhões de euros da banca. João Pereira Coutinho recebeu a Ordem de Mérito em 2006.
Também há referências onde poderá encaixar Zeinal Bava, acusado na Operação Marquês de crimes de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal qualificada. Tem uma Ordem de Mérito Comercial. Henrique Granadeiro também tem uma condecoração da Ordem de Cristo.
Valentim Loureiro, condenado no caso Apito Dourado, manteve a sua condecoração, a comenda da Ordem de Mérito.
O fundador do BCP, Jorge Jardim Gonçalves, também recebeu a Grã-Cruz da Ordem Infante D. Henrique, sendo que o seu perfil encaixa na condenação por crime de manipulação de crimes de manipulação de mercado e na inibição de exercício de cargos na banca.
Acusado de quê?
José Berardo não pôde fazer um “verdadeiro e próprio contraditório” face às imputações de Mota Amaral porque o advogado refere que, na nota de culpa recebida – que Saragoça da Matta coloca sempre entre aspas –, não há factos que verdadeiramente justifiquem um processo.
“Em momento algum se cuida de descrever o concreto comportamento (seja ele uma afirmação ou uma atitude, seja lá o que isso possa ser) do arguido que, a ser considerado provado, possa consubstanciar a violação de um qualquer dever”. “Não podemos identificar uma verdadeira e própria nota de culpa”. Daí que se peça o arquivamento, sem qualquer sanção (que pode ser adomestação ou irradiação da Ordem).
Na missiva, a defesa do empresário madeirense critica a postura dos deputados na comissão de inquérito. Houve uma “uma critica permanente à sua conduta” durante as cinco horas, houve “dureza e agressividade” nas questões.
“Infelizmente para si, o arguido não é dotado de especiais e elevadas capacidades oratórias e retóricas que se detetam na generalidade dos atores públicos, nomeadamente nos deputados, tendo sentido algumas dificuldades em expressar-se de forma mais adequada”, continua a carta.
E há aqui uma referência indireta a Zeinal Bava, cuja audição na comissão de inquérito ao BES foi criticada por não se lembrar de muitos dos factos, quando a defesa refere que não se remeteu o silêncio nem sofreu “qualquer tipo de amnésia”.
Nesse sentido, Paulo Saragoça da Matta acusa a Assembleia da República de poder estar a violar a separação de poderes, por a nota do CDS para a retirada das comendas ter um juízo opinativo.
O que falta
Em causa está um processo para a eventual retirada de duas ordens atribuídas a Berardo: o grau de comendador da Ordem do Infante, recebida em 1985; a Grã-Cruz da Ordem do Infante, de 2004.
Depois de facultada esta possibilidade de defesa, será agora concluída a instrução e o processo é presente ao Conselho das Ordens Nacionais, sendo que Mota Amaral será o responsável por fazer esse relato. Não há data para essa entrega do processo às mãos de Manuela Ferreira Leite. Certo é que Mota Amaral não terá direito de voto na decisão final, que poderá ser de acusação ou arquivamento.