Economia

Imposto sobre os negócios digitais: o gato, o rato e o vinho francês

Imposto sobre os negócios digitais: o gato, o rato e o vinho francês

Quando França decide criar uma taxa sobre os negócios da Internet, o tabuleiro do comércio mundial treme, com os EUA a jogarem a cartada do aumento das taxas alfandegárias, até sobre o reputado vinho francês. Será esta a melhor forma de acabar com o jogo de gato e rato entre as grandes tecnológicas e as autoridades fiscais? Académicos do outro lado do Atlântico sustentam que não, numa opinião partilhada pelos fiscalistas portugueses ouvidos pelo Expresso para quem a solução francesa: é “rudimentar”, “fácil” e com “vistas curtas”

É uma espécie de jogo de gato e de rato. Em que por mais inventivo que seja o caçador, a presa acaba sempre por conseguir escapulir-lhe por entre os dedos.

Como taxar os negócios digitais é um dos grandes dilemas fiscais de nível mundial, em que a pele do gato é vestida pelos Governos e respetivas máquinas tributárias e o papel do rato cabe às grandes companhias tecnológicas, que, aparentemente, quanto mais faturam menos pagam de impostos. Embora (também aqui) não haja consenso sobre este aspeto.

Um dos mais recentes episódios que deu colorido a esta questão – antiga, por sinal, mas sem uma solução brilhante – foi a imposição por, França, de imposto que deverá ser pago pelas empresas tecnológicas globais com receitas anuais superiores a 750 milhões de euros. A taxa são 3% sobre os rendimentos gerados com os utilizadores franceses e a expectativa das autoridades de Paris é que as receitas fiscais obtidas com esta medida possam ascender aos 500 milhões de euros, por ano.

Cansada das hesitações europeias, França avançou mesmo com o novo imposto apontando o alvo a companhias como a Google, Apple, Facebook, Alphabet ou eBay (aliás, este tipo de taxa é conhecida pelo acrónimo GAFA: Google, Amazon, Facebook e Apple). A reação dos Estados Unidos não se fez esperar e será desencadeada uma investigação para apurar se esta medida configura uma prática comercial desleal, além de ameaças de mais taxas alfandegárias sobre produtos franceses. Nem o vinho escapará, garantiu o presidente norte-americano, Donald Trump.

Lançou-se mais uma acha para a fogueira, já bem inflamada, do comércio mundial, em que as tensões entre Washington e Pequim tendem a recrudescer a cada dia que passa.

Mas será o imposto francês – que não é uma iniciativa inédita, com a União Europeia a tentar fazê-lo há vários anos, mas sem o sucesso do consenso – a melhor forma de taxar estes negócios?

Num artigo recente, publicado no site da Harvard Business Review e assinado por quatro académicos da área das ciências económicas e empresariais (um da Universidade de Dartmouth, nos EUA, e os outros três ligados à Universidade de Calgary, no Canadá), são apontadas diversas fragilidades ao imposto francês. Não que os autores concordem que os colossos digitais não paguem impostos, mas porque consideram que a solução de Paris não será a mais adequada. “Uma tributação ‘cega’ das grandes firmas digitais baseada, apenas, nas suas receitas brutas é um instrumento demasiado tosco para dar resposta aos supostos défices orçamentais dos governos locais”, escreve o grupo de académicos, pedindo “um debate mais substancial sobre o assunto e ideias mais imaginativas que assegurem uma tributação justa e efetiva”.

Na sua opinião, é indiscutível que as companhias estrangeiras devem contribuir para as despesas públicas dos países, como a educação, segurança, infraestruturas, serviços, combate aos incêndios ou defesa, porque é graças a estes investimentos que existem os mercados onde estas empresas fazem dinheiro. Porém, impor o fardo dos défices das contas públicas dos Estados sobre as empresas digitais é, “não só injusto, mas também um factor que reduz a inovação”. “Seria como taxar um serviço de email estrangeiro para financiar os apoios sociais dados aos trabalhadores postais desempregados”, sustentam os académicos.

Em todo o lado e em lado nenhum

“Como em todas as grandes questões tributárias, este movimento mistura diversas vertentes, tais como legítimas preocupações sobre a desadequação do sistema fiscal face à digitalização da economia, a tentativa dos Estado em obter novas receitas e também uma boa dose de retórica anticapitalista e demonização das grandes empresas”, considera Joaquim Pedro Lampreia, sócio da Vieira de Almeida (VdA).

É que mobilidade de um grande número de atividades económicas “digitalmente intensivas”, hoje as maiores fontes de lucros, e a sua “inerente capacidade de deslocarem as fontes de valor ao sabor de interesses fiscais, levam necessariamente os Estados a questionarem-se sobre a adequação dos atuais instrumentos de tributação e a buscar alternativas que protejam ou compensem esta flutuação dos lucros das grandes multinacionais detentoras e gestoras de atividades intangíveis que ‘estão em todo o lado e em lado nenhum’”, enquadra, por sua vez, Fernando Castro Silva, sócio da Garrigues.

Resumidamente, para Tânia de Almeida Ferreira, sócia da CCA Law Firm, é evidente a falta de capacidade dos modelos vigentes para dar resposta ao problema da “ausência de base física, como elemento legitimador e forma de determinação do valor criado em cada jurisdição”. No novo cenário do comércio internacional em que se fazem negócios sem se precisar de ter presença local, “os modelos tradicionais são obsoletos” porque “a economia digital permite desde logo a presença de uma determinada empresa em vários países, com uma cada vez maior segregação das várias fases do processo de produção e comercialização, acesso a um maior número de clientes, sendo comum fortes presenças empresariais num determinado país sem que aí tenham qualquer presença física”.

Solução “rudimentar”, “fácil” e com “vistas curtas”

É, no entanto, compreensível a iniciativa francesa, concordam os fiscalistas portugueses ouvidos pelo Expresso. Tânia de Almeida Ferreira não defende um imposto desta natureza, mas “acima de tudo” percebe as razões subjacentes. “Entendo-o [o imposto] por dois motivos: a abertura que num contexto europeu lhe foi dada para esse efeito, as características inerentes ao sistema de tributação francês”, refere. Porém, na sua opinião, França adotou uma solução “inquestionavelmente mais fácil”, pois “um imposto sobre receitas, em regra associado a uma taxa baixa sobre uma base elevada, tende a ser mais facilmente implementado, por autoridades tributárias e contribuintes, permitindo uma maior agilidade na sua gestão e uma maior facilidade de fiscalização e controlo”.

Fernando Castro Silva vê a opção do Executivo como uma “via mais fácil”. E sendo esta “uma via ‘fora do sistema’ que está globalmente aceite e testado para a imputação de lucros entre estados em relação a atividades plurilocalizadas, nunca deixará de ser uma opção de ‘vistas curtas’, destinada a ter uma existência transitória mas com propensão para a eternização como muitas soluções 'temporárias’ que, pela força do argumento da receita, se tornam definitivas”.

Para Joaquim Pedro Lampreia “um imposto sobre o volume de negócios, como este, é um instrumento muito rudimentar, que tributa o que não deve e deixa passar o que devia tributar, com custos burocráticos e económicos grandes para as empresas, que convive com um imposto sobre os lucros, criando uma dupla tributação”.

Há outras vias?

Que formas mais inovadoras de taxação poderiam ser adotadas? Tânia de Almeida Ferreira é pragmática perante a dificuldade de uma solução perfeita. “Não há grandes alternativas: ou seguimos a via mais justa – a tributação do lucro efetivamente gerado num determinado país – com perda de eficácia; ou seguimos uma via mais eficaz, que, ao assentar em volume de negócios e não em lucro, pode gerar dupla tributação, sendo como tal menos justa”. Outro problema é que esta “será também uma via potenciadora de distorções dado que aplicará uma mesma taxa a todas as tipologias de serviços digitais sem atender a eventuais especificidades de serviços e ou de operadores, efeito este que tende a não ocorrer em modelos de tributação assentes no lucro”.

A dupla de tributação internacional é, também, para Fernando Castro Silva um problema a ter em conta. Para o advogado da Garrigues “são preferíveis soluções que assentem na tributação direta e no desenvolvimento a partir da base conceptual, sedimentada e doutrinariamente rica, com origem nos modelos de convenções para prevenir a dupla tributação, que me parece ter a plástica suficiente para facilitar a adaptação às novas formas de comércio”. Ou seja, seguir por “uma solução dentro do ‘sistema’ que permita evitar uma concorrência ‘desleal’ entre estados que uma solução fragmentária arrisca causar”.

Já Joaquim Pedro Lampreia, e embora admita que se trata de uma solução de difícil consenso e de difícil controlo, sugere a criação de uma fórmula para “dividir o lucro das empresas que prestam serviços digitais pelos diversos países, podendo cada país tributar a sua parcela desse lucro – mas apenas essa parcela, e não o volume de negócios – à taxa que esteja em vigor”. Além disso “a alocação do lucro tem a vantagem de ser uma adaptação do edifício internacional existente e não um salto no desconhecido, passando a abranger todos os prestadores (e não só os grandes)”.

Ou seja, não é preciso inventar de novo a roda

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