Fisco lança raide sobre empresas na Zona Franca da Madeira
Inspeções cancelam benefícios fiscais e ocorrem numa altura em que Portugal defende o regime em Bruxelas
Inspeções cancelam benefícios fiscais e ocorrem numa altura em que Portugal defende o regime em Bruxelas
Jornalista
Pequenas e grandes empresas licenciadas na Zona Franca da Madeira (ZFM) estão a ver os seus benefícios fiscais cancelados devido a divergências quanto ao número de postos de trabalho criados na região. A investida da Autoridade Tributária (AT) ocorre numa altura em que a Comissão Europeia está a investigar o regime, precisamente por este motivo, e pode enfraquecer a posição portuguesa junto de Bruxelas.
As liquidações adicionais têm ocorrido tanto na Região Autónoma (pela mão das autoridades fiscais regionais) como em Lisboa (pela Unidade de Grandes Contribuintes) e, embora tenham fundamentos variados, consoante as situações concretas das empresas, têm em comum o facto de girarem em torno do conceito de “posto de trabalho” e de enxertarem argumentos que até aqui não tinham sido utilizados nas inspeções.
Por ser considerada uma região ultraperiférica, que precisa de ser compensada pela sua insularidade, a Madeira, através do Centro de Negócios, goza de um regime especial de auxílios de Estado, que lhe dá a possibilidade de criar incentivos fiscais especiais para atrair investimentos. Estes incentivos fiscais foram variando ao longo do tempo, estando neste momento em vigor dois regimes — o regime III e o regime IV —, que concedem generosos descontos no IRC às empresas licenciadas desde que criem postos de trabalho (ver regras mais detalhadas à direita). O problema é que, apesar da centralidade do conceito de “posto de trabalho”, ele não aparece definido em lado algum na lei fiscal, dando azo a múltiplas interpretações.
Uma dessas divergências, que motivou uma das levas de liquidações adicionais, passa por saber se o trabalho a tempo parcial também é considerado um posto de trabalho criado para este efeito e em que termos. A AT considerou que não, corrigiu o IRC para cima, e os contribuintes recorreram para o Governo Regional, argumentando que foram as próprias autoridades regionais que, através de um despacho de 2009, criaram esta possibilidade (ver regras detalhadas em baixo).
Num outro conjunto de liquidações adicionais, estas a cargo da Unidade de Grandes Contribuintes, o Fisco preocupou-se com a questão geográfica, isto é, de saber onde tem de ser criado o posto de trabalho para que possa ser contabilizado no benefício fiscal.
A AT sustenta que, se o regime especial de auxílios de Estado tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento da Madeira, então as empresas licenciadas na ZFM têm de criar os postos de trabalho na região. Mais ainda, a atividade tem de ser mantida na região, sob pena de não se desvirtuarem os objetivos da criação do regime.
O problema é que os contribuintes argumentam que nunca a lei foi interpretada desta forma nem tal decorre dos regulamentos em vigor. Um decreto regulamentar de 1987 do Governo Regional diz que as entidades da ZFM podem recrutar o seu próprio pessoal localmente ou fora da região, e um outro despacho de 2009 refere que a relação laboral “deve ser aferida e comprovada pela relação laboral estabelecida entre o trabalhador e a atividade licenciada”. Ou seja, apenas se exige que haja vínculo laboral e nada mais.
Exigir às empresas que contratassem apenas madeirenses poderia violar a liberdade de circulação de trabalhadores a nível europeu. E exigir que os postos de trabalho estivessem localizados na Madeira é incompatível com algum tipo de atividades que lá estão licenciadas, como é o caso da afetividade de transporte marítimo ou das plataformas de perfuração de gás e petróleo.
Ao realinhar a sua argumentação com as preocupações manifestadas pela Comissão Europeia, a AT está a jogar pelo seguro, assegurando-se desde já que o dinheiro estará do seu lado, caso Bruxelas venha a considerar que o conceito de “postos de trabalho” não tem vindo a ser devidamente fiscalizado. Como o direito para liquidar impostos caducam ao fim de quatro anos, o Fisco toma em 2018 a dianteira relativamente ao exercício de 2014.
Mas, ao mesmo tempo, ao fazer liquidações adicionais com base numa interpretação “nova”, mais restritiva, arrisca-se também a enfraquecer a posição das autoridades nacionais, que já estão a defender o regime junto da comissária da concorrência.
Numa passagem recente por Lisboa, Margareth Verstager foi diretamente questionada sobre como compatibiliza a exigência da localização dos postos de trabalho na Madeira com o princípio da liberdade de circulação dos trabalhadores e com a existência de atividades que, pela sua natureza, têm de ser desenvolvidas fora do arquipélago e deu uma resposta que aponta para um meio caminho. “Temos sérias dúvidas de que os negócios que estão a beneficiar da taxa reduzida estejam também a criar empregos na ilha”, mas um caso “extremo é o de uma letterbox [empresas que só têm uma caixa de correio], que, criando alguma atividade, ela é muito pequena”, e outro caso extremo “é exigir que os postos de trabalho sejam criados todos lá”. A virtude estará algures no meio: “Estamos a olhar para o meio termo entre os dois extremos”, referiu.
Do lado das autoridades nacionais, a atitude é de cooperação, não só para não assustar as empresas como para manter caminho aberto para uma renegociação de um novo regime que prolongue o atual. Para transmitir um sinal disso mesmo, o decreto regional de 2009 que estabelece, entre outras coisas, os requisitos e termos de criação de emprego está a ser revisto, devendo passar a excluir o trabalho temporário da lista de elegíveis, apurou o Expresso.
Em que consistem os benefícios fiscais?
Os benefícios às empresas licenciadas na Zona Franca da Madeira (ZFM) foram variando ao longo do tempo. Neste momento estão em vigor dois regimes — o regime III e o regime IV — que permitem às empresas a operar na zona franca terem descontos no seu IRC em troca do cumprimento de alguns requisitos. Um deles é a criação de postos de trabalho. No regime III, que agora foi alvo de inspeção (e está também a ser investigado pela Comissão Europeia), as empresas que se licenciaram entre 2007 e 2014 estão a pagar uma taxa de IRC de apenas 5% até 2020, mas impõem-se valores máximos de matéria coletável que podem ser sujeitos a esta taxa reduzida em função do número de postos de trabalho criados. Para se ter uma ideia, quem criar 1 ou 2 postos de trabalho pode pagar 5% de IRC sobre €2,73 milhões, por até 50 postos de trabalho pode pagar 5% de IRC sobre €35,54 milhões, e quem criar 100 ou mais empregos sujeita-se à taxa ultrarreduzida até €205,5 milhões de lucro (o que sobrar é sujeito ao IRC normal).
Qual é o problema?
O problema reside na definição de “posto de trabalho”, um conceito que não está em lado algum na lei fiscal e que pode dar azo a manipulações ou ser lido de formas diferentes. Em alguns casos, a AT vem dizer que o trabalho temporário não qualifica para efeitos de criação de posto de trabalho. Noutros, considera que os postos de trabalho, para serem elegíveis para efeitos do benefício fiscal, têm se estar localizados na Madeira.
E o que dizem as regras?
Depende das regras que se invoquem. No caso do trabalho temporário, a AT recorre ao direito europeu, nomeadamente às Orientações da Comissão Europeia relativas aos auxílios estatais com finalidade regional ao investimento, para dizer que tem de haver um aumento líquido do número de trabalhadores diretamente empregados no estabelecimento. Já os contribuintes dizem que este conceito não pode ser aplicado porque os auxílios do Estado são diferentes (um é um auxílio do Estado ao funcionamento, o outro ao investimento). E recordam um despacho de 2009 do governo regional da Madeira, uma das espinhas dorsais deste regime, que considera um conceito muito amplo o preenchimento do requisito de posto de trabalho. Estão lá contratos em comissão de serviço, a tempo parcial, teletrabalho, intermitentes (mesmo com uma pluralidade de empregadores), trabalho temporário ou cedência ocasional de trabalhadores. O importante é que a entidade licenciada tenha o encargo do pagamento dos salário, quer haja ou não lugar a qualquer tributação ou contribuição efetiva em território nacional.
E no caso da localização do posto de trabalho?
A AT diz que este tipo de estatutos especiais servem para “contribuir para o desenvolvimento das regiões mais desfavorecidas apoiando o investimento e a criação de emprego”. Ora, o desenvolvimento regional é potenciado através de rendimentos de atividades realizadas na Madeira e de postos de trabalho criados e mantidos efetivamente lá. Já os contribuintes têm uma interpretação diferente: dizem que nunca tal lhes foi exigido; invocam o decreto regional de 2009 quando este diz que “o importante é que haja uma relação com a atividade licenciada no CINM” e um outro de 1987, que diz que as empresas podem “recrutar o seu próprio pessoal localmente ou fora da RAM”; e que a exigência não é compatível nem com a liberdade de circulação de pessoas nem com a natureza de algumas atividades, que não são desenvolvidas na Madeira (mas no estrangeiro ou em alto-mar, por exemplo).
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: emiranda@expresso.impresa.pt