Música

Um berço para embalar e rolar: Coliseu do Porto cancela o espectáculo de "The Cradle Will Rock"

Um berço para embalar e rolar: Coliseu do Porto cancela o espectáculo de "The Cradle Will Rock"

Sessenta anos depois da estreia da obra de Marc Blitzstein nos EUA, também cancelada, agentes culturais portugueses voltam à carga

A notícia de que o Coliseu do Porto cancelara o espectáculo de "The Cradle Will Rock" (1937), marcado para 25 de junho, devido à fraca procura de bilhetes, é só mais um sintoma do triste estado da cultura em Portugal. No domínio do 'teatro por música', habituáramo-nos a que João Lourenço (Teatro Aberto) e João Paulo Santos (Teatro Nacional de São Carlos) nos fossem regalando com repertório importante da primeira metade do século XX, mas negligenciado em Portugal: Weill, mas também Britten, Hindemith e Krenek. No ano passado a sorte calhou a Marc Blitzstein (1905-64), autor da ópera "Regina" (1949, baseada na peça "The Little Foxes", de Lillian Hellman) e de "The Airborne Symphony" (1946).

Na história da ópera há uma obra resiliente e trágica. Não gosto de usar palavras da moda – que se tornam chavões a torto e a direito que nada significam, tal como "o conto, dito por um idiota", na boca de Macbeth – mas a resiliência não é de hoje. Refiro-me a "The Cradle Will Rock" (1937), de Blitzstein. Notem a data da estreia: em plena Grande Depressão (financeira, económica, produtiva, social, etc.) na América, e a caminho da II Guerra Mundial. Onde é que já vimos isto? Ontem, hoje e amanhã.

Assisti ao espectáculo em Lisboa no Teatro Aberto em fevereiro de 2022, encenado por João Lourenço e dirigido por João Paulo Santos. O elenco (português) era excelente: cito ao acaso, Mário Redondo, Marco Alves dos Santos, Nuno Dias, Ana Ester Neves, João Merino, Leila Moreso, etc. Percebi logo que iria ser o melhor, mais importante e valioso espectáculo de ópera do ano em Lisboa, e foi! Aqui estava um Berço (Cradle) que não só era embalado (Rocked), mas que merecia rolar (Roll) por todo o país. Rock 'n Roll, Indeed! Infelizmente, o Rolling sossobrou logo no Porto... Porquê? Provavelmente porque se assustaram com o forte conteúdo político da obra – que não perdeu actualidade, pelo contrário – e não souberam fazer a publicidade devida. (Informar com conhecimento de causa, dá trabalho...)

Infelizmente, o Rolling sossobrou logo no Porto... Porquê? Provavelmente porque se assustaram com o forte conteúdo político da obra – que não perdeu actualidade, pelo contrário – e não souberam fazer a publicidade devida. (Informar com conhecimento de causa, dá trabalho...)

Convém recordar as circunstâncias da criação de "The Cradle Will Rock", para perceber como a história se repete, muitas vezes como farsa trágica por incompetência dos intervenientes, ditos (ir)responsáveis. Nas palavras (1914) do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, "o homem é o homem e a sua circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim". Composto na sequência da morte da mulher de Blitzstein – a escritora Eva Goldbeck (1901-36), vítima de cancro da mama e de anorexia – "The Cradle Will Rock" ou 'O Berço Abanará' é um produto das respectivas circunstâncias. 'Peça por música' lhe chamou o autor, mas afinal o que é a ópera senão teatro por música?

Ouço-a também como o desabafo de um homem atormentado. Abertamente gay, Blitzstein era, na verdade, bissexual. Confessou ter tido várias relaçõess sexuais com mulheres (incluindo a esposa, Goldbeck) e que gostava da experiência. Ficou devastado com a morte da mulher, após uma relação de quase oito anos. Em 1936 os EUA sofriam a Grande Depressão. Para dar uma idéia, basta dizer que foi quinze vezes mais severa do que a Grande Recessão de 2008. O New Deal (Novo Acordo) do Presidente F. D. Roosevelt para acudir ao terço da nação "mal vestida, mal alimentada e mal alojada", passava por convencer os ricos e remediados da necessidade em implementar políticas de apoio social (com vago cheiro a comunismo...). E quem melhor para dar conta dessa necessidade do que os artistas? Romancistas, cineastas, pintores, muralistas, fotógrafos, compositores, designers, etc. foram chamados e apoiados para dar conta do pobre estado da nação. Pela primeira vez na história da civilização, a caridade – no sentido nobre da palavra – começava pelos artistas. São eles e elas que com as suas artes reflectem a sociedade.

Na composição (música, libreto e letra das canções), Blitzstein foi apoiado pelo Federal Theatre Project (da Works Progress Administration, WPA). A peça é uma alegoria brechtiana de corrupção e ganância capitalista, isto é, uma 'peça de moralidade' para o nosso tempo; a acção, organizada em dez cenas, decorre em Steeltown, USA.

A primeira cena, numa esquina de rua, envolve Moll, uma jovem prostituta, e um polícia. Bertolt Brecht, então na América e a quem a obra é dedicada, aconselhou o compositor a generalizar o tema da prostituição. Afinal, quase toda gente se prostitui pelo ganho (de dinheiro, benesse, prazer ou poder): artistas, sacerdotes, médicos, advogados, jornalistas, políticos, etc. Em Steeltown (Vilad'aço) quem manda é Mr. Mister e família, e o resto adivinha-se... Quanto à música de Blitzstein, brava, dissonante e percutiva, o menos que se pode dizer é que é excitante. O produtor era o lendário John Houseman e o encenador, Orson Welles (então com 21 anos). O ensaio geral a 14 de Junho de 1937, aberto a convidados, foi um êxito. Em Lisboa, João Lourenço operou a quadratura do círculo com uma encenação fluida, bonita – sim, bonita, por ser limpa e justa! – e 'na mouche'...

O Porto, porém, virou-lhe agora as costas, após mais de um mês de ensaios e a duas semanas da estreia acordada. (Em 2022, tinha sido o próprio Coliseu a pedir ao Teatro Aberto para levar o "Cradle".até ao Porto; a então directora, Mónica Guerreiro, vira o espectáculo em Lisboa, e percebera que era essencial repeti-lo no Norte.) Em Fevereiro passado, ficou tudo combinado com a nova direcção. Até ao dia 12, quando o Teatro Aberto recebeu um frio email a anunciar o cancelamento, por falta de interesse do público. Nem um telefonema de viva voz; como exige a mínima cortesia. Uma história portuguesa, com certeza. O Teatro bem tinha avisado que não se tratava de Bob Dylan ou dos Coldplay, mas sim dos tempos heróicos dos anos 1930. Em Portugal, na arte dramática (por música, ou não), não há grande tradição de compra antecipada de bilhetes. Será que o Coliseu sabia o que estava em causa e da importância musical, teatral e política desta obra? Eis a questão!

Em Lisboa, João Lourenço operou a quadratura do círculo com uma encenação fluida, bonita – sim, bonita, por ser limpa e justa! – e 'na mouche'... O Porto, porém, virou-lhe as costas. Nem um telefonema de viva voz; apenas um frio email.

Sem saber – coitada da Dona Ignorância – os agentes culturais do Porto esqueceram-se de fazer o seu trabalho e repetiram o escândalo da estreia novaiorquina (ou pior). Sim, à última hora o espectáculo no Maxine Elliott Theatre foi cancelado pela WPA. Puro lock-out! A justificação foi um corte de trinta por cento no orçamento do Projecto Federal do Teatro – a mais eficiente forma de censura de um espectáculo que causava engulhos a muita gente importante e prostituída. A Guarda fechou o teatro a cadeado, e não permitiu que actores e pessoal técnico retirassem cenários e guarda-roupa, considerados propriedade do Estado. Ironicamente – tratando-se de uma obra que defendia energicamente o direito à sindicalização – recusado e atacado por Mr. Mister – os sindicatos das artes performativas (Actors' Equity e AGMA) seguiram as directivas federais e proíbiram actores e músicos de actuar.

O povo, porém, é o último a saber, e o público não fora avisado. Mesmo assim, para raiva dos poderosos, o milagre aconteceu. A história é bem contada no filme "Cradle Will Rock" (1999), de Tim Robbins, com Hank Azaria (Blitzstein) e um elenco de estrelas (Vanessa Redgrave, Bill Murray, Susan Sarandon, irmãos John e Joan Cusack, Barbara Sukowa, etc.).

Em poucas horas, produtor, encenador, compositor e amigos entusiastas conseguiram arranjar um velho piano vertical. A descoberta de um teatro disponível para aceitar um espectáculo proíbido foi mais complicada, mas conseguiu-se: do Maxine Elliott's na rua 39 passou-se para o Venice Theatre na rua 58. A 'word of mouth' funcionou, e uma boa parte do público foi alegremente a pé de um teatro para o outro. Meros transeuntes foram convidados a assistir (de borla). Em vez de orquestra, o compositor no palco ao piano. Com o aplauso geral, Blitzstein começou a tocar a introdução.


No meio da plateia, Olive Stanton (Moll) levantou-se e cantou o primeiro tema, 'I'm checkin' home now'. Nada de cenários ou figurinos; apenas um modesto projector de luz apontando para os dezanove actores-cantores espalhados pelo auditório. Resultado: a mais célebre estreia musical da história da Broadway, 16 de Junho de 1937! Cerca de seis meses depois, com os intérpretes em licença da WPA, "The Cradle Will Rock" abria no lendário Mercury Theatre de Houseman e Welles. A reposição em 1947 foi dirigida por Leonard Bernstein (com Alfred Drake no papel de Larry Foreman, o sindicalista).

Durante a Guerra, Marc Blitzstein, serviu em Londres na Força Aérea do Exército Americano (na Divisão de Cinema, como compositor, guionista, tradutor e director musical do American Broadcasting System), tendo sido promovido a sargento. Aguentou o Blitz (fazendo jus ao apelido), treinou o Negro Army Chorus (concertos no Royal Albert Hall) e compôs a "Airborne Symphony" (1946) – uma cantata para narrador, solistas, coro masculino e grande orquestra – e coligiu canções de resistência francesas.



Em 1958 respondeu perante a Comissão de Actividades Não-Americanas do Congresso (das purgas mccarthystas), confessou ter pertencido ao partido comunista, mas recusou-se a colaborar e a denunciar nomes. Em meados de 1963, Blitzstein mudou-se para a ilha francesa de Martinica (Caraíbas), com o intuito – declarado, mas não verdadeiro – de terminar a sua ópera "Sacco and Venzetti", uma encomenda da Fundação Ford a ser estreada no Met de Nova Iorque. ('Sacco e Venzetti' refere-se ao duvidoso caso do julgamento e condenação à morte de dois imigrantes italianos anarquistas, por assalto, roubo à mão armada e assassinato do guarda e caixeiro de uma empresa americana de sapatos; o caso seria objecto de um filme famoso de Giuliano Montaldo em 1971.)



Ao fim da tarde de 24 de Janeiro de 1964, Marc Blitzstein foi encontrado na rua a gritar por socorro, semi-nu, vítima de agressão violenta. Não, não fora um desastre de automóvel – desculpa inicial; tratara-se de um encontro num bar portenho com três marinheiros portugueses da Madeira, a quem solicitara sexo, e que acederam para o atacar e roubar. Chamado o oficial do consulado americano, William B. Milam (futuro embaixador no Paquistão), ao hospital, o médico verificou muitas feridas e contusões por todo o corpo, mas achou-o OK. Horas depois, Marc morria com um fígado estilhaçado (não detectado). Sessenta anos depois, agentes culturais portugueses voltam à carga: desta vez cancelam-lhe a obra. #EleTambém.

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