Ponhamos as coisas nestes termos: o que mais falta a esta proliferação de imagens em movimento que povoam todos os ecrãs deste mundo? Falta Cinema, isto é, a prática de uma linguagem que se esforce por encontrar uma especificidade funcional e estilística para narrar, com elegância e inventiva, em imagens e sons — sobretudo imagens, se quisermos ser puristas —, o que não consegue ser contado por outros meios.
E se falta Cinema, então poderemos estar gratos às parcas, ou a quaisquer outras entidades que controlam o curso desta vida, por nos terem posto em caminho “O Assassino”, de David Fincher.
Se quiserem, poderemos entoar ações de graças considerando apenas o fragmento inicial do filme, o que descreve o modo de operar, a ausência de consciência moral e os mecanismos de fuga do nosso protagonista, um assassino profissional contratável para qualquer serviço no âmbito das suas competências, em qualquer momento, em qualquer lugar. Nem nome tem, embora ao longo do filme o vejamos usar múltiplos passaportes de diferentes nacionalidades, cada um com uma identidade reconhecida pela facilidade com que atravessa fronteiras e mesmo continentes.
Ponhamos, também, as coisas em termos de prazer, para afirmar sem grandes riscos de contraditório a excelência da degustação que fazemos da linguagem cinematográfica ao longo desse trajeto, pegando em todos os elementos que a materializam. Alguns dirão que bastaria a presença, a voz e o corpo de Michael Fassbender — vejam como ele se move, como ele se dobra, desliza, se afirma ou se mimetiza na massa humana — para pôr um espectador exigente em expectante beatitude e não serei eu a anular tal presunção.
Acrescento, todavia, que não atingiria a magnificência se não houvesse aquele trabalho sobre a luz, a sombra, a cor, levado a cabo pelo diretor de fotografia Erik Messerschmidt (já tinha feito, para Fincher, o requintado preto e branco de “Mank” premiado com o Óscar).
Nem a narrativa teria aquela eficácia dramática se não fosse servida por uma montagem felina, ora a dar tempo aos planos ora a ritmar cerce quando a aceleração emocional urge, montagem assinada por Kirk Baxter, fidelíssimo colaborador do realizador desde “O Estranho Caso de Benjamin Button”, em 2008. Ganhou, aliás, dois Óscares em duas dessas colaborações — “A Rede Social” (2010) e “Millennium 1 — Os Homens Que Odeiam as Mulheres” (2011). Parceria perfeita.
Poderíamos, ainda, sublinhar a cenografia — nessa sequência inicial até parece que quase nada haveria a considerar em tal território, se o despojamento não fosse, ele mesmo, uma escolha com uma funcionalidade perfeita.
O production designer, responsável por tudo o que respeita ao aspecto visual do filme, chama-se Donald Graham Burt, labora com Fincher desde 2007 (“Zodiac”) e foi em filmes dele que ganhou Óscares: “O Estranho Caso de Benjamin Button” (2008), “Mank” (2020). E será estultícia não mencionar o texto, o monólogo interior, a voz off que nos vai martelando a cabeça com reflexões sobre tudo e a música dos Smiths — argumento de Andrew Kevin Walker (lembram-se de “Seven”; também era dele), a partir de uma novela gráfica.
Poderíamos continuar aqui a evocar matérias e criadores que edificam o complexo dirigido, com garbo, pelo maestro David Fincher. Mas, de que trata o filme? Muito simples: um assassino profissional falha uma encomenda e tem de seguir a cadeia de comando até eliminar o encomendador. No fim do caminho encontra Tilda Swinton — e temos outra sequência de antologia. Nada de muito novo, nada que não tenha sido visto dúzias de vezes? Sim, claro — mas, não como em “O Assassino”, não narrado com tão luxuriante vocabulário. É Cinema, Cinema-Cinema, estamos entendidos?
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