“O Crime É Meu”: François Ozon pega numa peça dos anos 30 para fazer uma comédia deliciosamente frívola

Ozon pega num comédia de boulevard dos anos 30 e faz um filme deliciosamente elegante e divertido. Como um bom champanhe
Ozon pega num comédia de boulevard dos anos 30 e faz um filme deliciosamente elegante e divertido. Como um bom champanhe
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Que me perdoe o João Paulo Martins, vizinho de muitos anos algumas páginas adiante, que destas coisas percebe muito mais do que eu, mas os vinhos, como os filmes, de que gostamos, não afinam todos pela mesma bitola. Tomemos o champanhe ou, se quisermos, a sua versão transalpina e plebeia, o prosecco. Não têm a complexidade dos grandes tintos, a macieza, a intensidade violoncélica do bouquet, a perenidade na língua que demora para lá do derrame do líquido na boca. Não têm a seriedade grave que se pede a quem envelhece com a dignidade de um cavalheiro.
Pelo contrário, são frescos, leves, propícios à alegria, ao riso; em vez de espirituais, são espirituosos, não é por acaso que os associamos à ideia de ligeireza, volubilidade, diletância. E também ao teatro de boulevard, essa invenção oitocentista com que os burgueses riam com os vícios, usos e ademanes da burguesia sem verdadeiramente os pôr em causa nem lhes passar pela cabeça qualquer subversão. Atenção, nada de confusões com aquele branco ‘com borbulhas’ de pressão, variante moderna do vinho com gasosa. Esse é o equivalente às comédias pé de chumbo, vertendo boçalidades, lugares comuns, baixezas. Pelo seu lado, o boulevard é elegante, acerbo sem sarro na garganta, picante sem andar pelas partes baixas. Uma senhora nunca cora, sorri, subentendida.
E, claro, a ninguém passa pela cabeça pensar que o boulevard é um retrato da vida; ao contrário, sublinha a sua artificialidade, seja no traço dos personagens, seja no modo como os atores representam. No melhor dos caso, a falsidade estará afixada por todo o lado. Em “O Crime É Meu”, o filme em que François Ozon pegou numa peça dos anos 30, assinada por Georges Berr e Louis Verneuil, para fazer uma comédia deliciosamente frívola, o fingimento é de fio a pavio.
Começa no jogo cenográfico, onde explícitas construções de boa carpintaria se mesclam com prodígios digitais, com as cores sempre exacerbadas, os brilhos e luzeiros mais fortes; prossegue no guarda-roupa, nas caracterizações, nos cabelos, constantemente a sublinhar classes sociais e estatutos profissionais, talvez mesmo moralidades; com isso se abre caminho a uma história que se espera que o espectador aceite sem considerar por certo que seja inteiramente possível; tudo ganhando corpo nos intérpretes que representam no intervalo da pauta que vai do exagero ao cabotino.
Brilhantes são — com Fabrice Luchini, num juiz de instrução campeoníssimo em erros judiciais e Isabelle Huppert, numa ultrapassada diva do cinema mundo, a chegarem ao zimbório. Todas essas coisas em equilíbrio instável, com desmoronamentos em linha de vista. Nunca acontecem. É privilégio do espectador degustar tudo num pequeno estado de euforia. Como quem bebe champanhe e rejubila.
Não sejamos ingénuos, contudo. “O Crime É Meu” não se limita a fazer titilações. Há qualquer coisa de oportuno, em subtexto. No ecrã ocorre a história de uma jovem candidata a atriz, a partilhar uma mansarda com uma amiga advogada sem clientes, que um dia se vê acusada de um assassínio que não cometeu.
Sim, ela tinha estado na casa de um conhecido produtor de teatro, julgando-se convidada para protagonizar uma peça quando, na realidade, o que ele queria era fazer dela sua amante, pô-la por conta. Ali mesmo a assediara com física insistência, a que ela resistira, saindo porta fora e vagueando por Paris a lamentar a vida triste e com intentos suicidários a roçar-lhe as ideias. Acontece que o vilão foi baleado nessa mesma tarde e a polícia plantou nela a convicção de que encontrara a culpada.
Num primeiro momento a acusada reage com a afirmação de inocência, mas depressa percebe que talvez seja melhor outra estratégia. Sim, ela matara — cogita confessar — mas fizera-o para defender a sua honra, numa sociedade de homens abusivos ela erguera-se contra a iniquidade. Portanto, legítima defesa e afirmação de um grande ideal, caminho andado para a absolvição, a fama nos jornais, do palco do tribunal para o palco dos teatros é só um pequeno degrau. Assim procede — resulta em cheio. Até que a verdadeira assassina aparece...
O cinismo do processo — que se pulveriza em múltiplas direções quando a glória da protagonista acontece — é bastante adequado a estes tempos melindrosos pós-#MeToo. E não deixa de merecer sorriso de bom entendedor a grande frase de Isabelle Huppert, no termo de uma peça de teatro no fim do filme (“Neste mundo injusto de homens poderosos e cruéis, não há consolo mais reconfortante do que se tem nos braços de uma irmã”). Ozon, em entrevistas, ainda tentou invocar intentos feministas na sua obra, sem grande sucesso, convenhamos. O que lá está não é isso, é só supinamente divertido. Enfim, frivolidades...
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