Década e meia de tradução e um resultado: poemas de Bertolt Brecht por ordem cronológica

Os poemas de Bertolt Brecht, que Paulo Quintela levou década e meia a traduzir, surgem agora reeditados cronologicamente
Os poemas de Bertolt Brecht, que Paulo Quintela levou década e meia a traduzir, surgem agora reeditados cronologicamente
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“É pouca sorte que tantos de nós tenham chegado a Brecht pelo lado errado: primeiro estudámos a teoria, depois as peças, e só chegámos aos poemas como subproduto do teatro, em vez de vermos que os poemas levaram às peças e atravessam as peças, das quais nasceram as teorias”. Isto escreveram, com inteira justiça, dois dos seus tradutores. Dos anos 1910 até quase aos anos 30, os poemas de Brecht não são muito impressionantes, se os compararmos com os de Rilke ou Benn. Didácticos, jocosos, imitam os salmos ou as baladas populares e desenvolvem solilóquios com personagens sofridas. Nos textos celebremente musicados por Kurt Weil, sente-se outra energia comunicativa, através por exemplo de imagens de uma América cinematográfica (mais tarde, no exílio californiano, Brecht considerou Hollywood pouco mais que mentira e mercadoria); mas essas canções, traduzidas, perdem um pouco o tom acanalhado ou anarquizante, o desplante de cabaré, mesmo com equivalências e rimas perfeitamente adequadas. Paulo Quintela, que dedicou década e meia a traduzir Brecht, aproveitou a época revolucionária portuguesa para publicar, em 1975, um volume substancial intitulado “Poemas e Canções”, esse que é agora reeditado com uma organização dos poemas já não temática, como então, mas cronológica, ou seja, “diarística” e “histórica”.
Em 1926, o muito conhecido “O Pobre B. B.” anuncia um novo estilo prosaico, directo: “Eu, Bertolt Brecht, venho lá das negras florestas./ Minha mãe, quando inda andava no seu ventre,/ Levou-me prás cidades. E o frio das florestas/ Estará dentro de mim ‘té que na morte eu entre.” E continua: “Na cidade de asfalto é que eu vivo c’a sorte./ Desde início provido dos sacramentos de morte:/ De jornais. E tabaco. E aguardente./ Desconfiado e preguiçoso e, no fim, contente.” Tudo aqui é significativo: a oposição floresta-cidade, o pragmatismo e o desânimo, os prazeres e os pesares, a língua desempoeirada, coloquial, as corruptelas e elisões, o registo sentencioso e questionador: “Conheceis o tal Brecht sedento de saber,/ Todos cantáveis as suas cantigas./ Depois desatou a fazer-vos perguntas:/ Como é que as grandes riquezas foram juntas?” O discurso inquisitivo, afirmativo e programático, além do mais, funciona bem em tradução, porque está mais ligado ao sentido do que ao som. Brecht defende os desmunidos, os injustiçados, os humilhados, os “de baixo”, contra os “de cima”, banqueiros, juízes, políticos, ou até artigos da Constituição de Weimar: “O Poder do Estado vem do Povo./ — Mas para onde vai?/ Sim, pra onde é que vai?/ Pois pra algum lado há-de ir!” E, mais adiante: “Pergunta à propriedade:/ Donde vens tu?/ Pergunta às opiniões:/ A quem aproveitas?” E ao “desimportantizar”, satiricamente, o poema político, torna-se um mestre do género.
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