Costa homenageia Caetano Veloso: "Reconciliou-nos com a nossa poesia e o nosso fado"
JOSÉ SENA GOULÃO
Primeiro-ministro agraciou músico brasileiro com medalha de Mérito Cultural. Costa recuou a 1985 e ao momento em que Caetano correu “riscos” e fez o público português reconciliar-se com Amália Rodrigues, naquilo que descreveu como um momento decisivo que mudou a história do fado. “Foi por vontade de Deus e tudo mudou”
Foi numa cerimónia discreta e com público reduzido que o primeiro-ministro homenageou esta terça-feira ao autor brasileiro Caetano Veloso, que por estes dias tem enchido o Coliseu de Lisboa e prepara-se para encher também o do Porto. Entregando a medalha de Mérito Cultural ao músico de 81 anos, António Costa destacou o contributo de Caetano na promoção da língua portuguesa pelo mundo e, muito em particular, o contributo fundamental que deu quando, em 1985, fez o público português reconciliar-se com o fado no pós-ditadura.
“Caetano Veloso foi um dos músicos brasileiros que ajudou a minha geração a ouvir o português em canção, a perceber que a palavra cantada não tinha de ser só em inglês. Caetano Veloso reconciliou-nos com a nossa própria poesia, o nosso fado, e ajudou-nos a redescobrir os nossos próprios heróis e heroínas”, disse o primeiro-ministro num discurso em que também anunciou que o programa de intercâmbio para estudantes da CPLP se irá chamar “Frátria” em homenagem à canção “Língua”, de Caetano Veloso, que, segundo António Costa, é “todo um tratado sobre a língua portuguesa como um mosaico de falas dos mais diversos locais do mundo”.
Foi, contudo, na recordação do encerramento dos concertos de Caetano naquele ano de 1985, no Coliseu de Lisboa, que Costa se centrou para prestar a homenagem. É que, naquela altura, “o fado tinha caído em desuso” e Amália Rodrigues “estava há 10 anos afastada dos palcos”, devido à “apropriação” daquela marca cultural pelo regime da ditadura.
Mesmo sabendo dos “riscos" que corria, Caetano Veloso cantou o fado “Estranha Forma de Vida” não sabendo que Amália estava na plateia e, uma vez notada a coincidência, chamou-a ao palco e fez uma “pública e sentida homenagem ao dar testemunho da influência que a fadista tinha tido na sua formação musical”. Gerou-se automaticamente uma “ovação estrondosa” e uma união Portugal/Brasil num “longo abraço”, lembrou o primeiro-ministro.
JOSÉ SENA GOULÃO
"Para quem nasce no Brasil, o mundo é um lugar meio longe"
“Essa aclamação, que hoje pode parecer banal e óbvia, não o era em 1985. E isso fez uma sala inteira emocionar-se e render-se a Amália Rodrigues”, notou Costa, pegando nas palavras do musicólogo Rui Vieira Nery para constatar que aquele foi um momento de viragem: foi o momento em que se deu o “reencontro, o renascimento e a reabilitação do fado e de Amália aos olhos do público português, ou pelo menos de uma nova geração do público português”, disse. E citou Nery: “De repente, uma superestrela, um artista cool e arrojado, aparece a cantarolar ‘Foi por vontade de Deus’ e tudo mudou”.
Essa foi também a prova daquilo que sempre pautou a vida e obra de Caetano Veloso: “Na língua, como na música, Caetano esteve sempre ciente do património e da tradição em que se insere, mostrando que isso não era incompatível com uma incessante renovação e reinvenção”, disse o primeiro-ministro, falando num “património comum” e numa “nova língua” que Caetano fez chegar “ao mundo de todos nós”.
Depois do discurso de homenagem, e antes de a fadista Carminho aparecer de surpresa para participar na cerimónia dedicada ao “amigo”, Caetano Veloso agradeceu invocando o “orgulho” que sempre sentiu por ter nascido num país que fala português. E apesar de ter crescido com influências de música argentina, mexicana e cubana, com ecos da música inglesa longínqua, foi a língua portuguesa que o tornou músico.
“Porque para quem nasce no Brasil, o mundo é um lugar meio longe”, disse, sublinhando que a língua portuguesa é motivo de grande responsabilidade. “O facto de falar português é uma coisa que me honra e dá responsabilidade. Devemos lutar pelo brilho disso”, afirmou, agradecendo de forma sentida - e “modesta” - a homenagem prestada.