Cultura

Festival de Avignon: Juntos na vulnerabilidade, por Tiago Rodrigues

Festival de Avigno 2023 - Rimini Protokoll, Vidy © Léonard Rossi
Festival de Avigno 2023 - Rimini Protokoll, Vidy © Léonard Rossi

A programação da 77ª edição do Festival de Avignon, com a assinatura de Tiago Rodrigues, já foi apresentada. O reencontro naquele que é um dos principais palcos da Europa quererá responder aos desafios do mundo, mas sobretudo a algo que é tão íntimo quanto colectivo, a vulnerabilidade, “ingrediente rico da experiência humana”. A festa do reencontro começa a 5 de julho e termina a 25

É na rua que começará aquela que é vista por Tiago Rodrigues como uma festa e um lugar de encontro. A primeira edição do Festival de Avignon que o português programa agarra numa das frases ditas pelo seu fundador, Jean Vilar, em 1947 – “Avignon nos reunirá, e Avignon existirá” –, e atribui-lhe o valor de “código genético.

Para o ex-director do Teatro D. Maria II este festival nasceu dessa vontade de partilha, celebração e reunião e de “um casamento improvável” entre a exigência de qualidade, a descoberta e a complexidade”.

A expressão “casamentos improváveis” é aliás central na programação que concebeu, na medida em que é na relação entre alguns paradoxos que reside o corpo teórico que fundamenta as suas escolhas, e foi, de resto, por aí que começou na conferência de anúncio da programação realizada no dia 5 de Abril – três meses antes do início do principal festival de teatro da Europa e um dos mais importantes do mundo.

Os compromissos de Tiago Rodrigues variam muitas vezes entre a proximidade do festival com os territórios e populações onde decorre e a vontade de alargar a paisagem, entre a rua e os dourados da ópera.

G.R.O.V.E. de Bintou Dembélé, figura histórica do hip-hop, é um bom exemplo desse tom, dado, desde logo, na abertura.

Escolhido como espectáculo que abre a 77ª edição, a criação de Dembélé deambula pelas ruas de Avignon até chegar ao palco da ópera de Grand Avignon, esbatendo fronteiras entre artes, lugares, espaços, tempos.


Festival de Avignon 2023 - G.R.O.O.V.E., Bintou Dembélé, 2023 © Christophe Raynaud de Lage

O palco aos ingleses

Outra das frentes da programação não retira o privilégio que é dado à língua francesa, mas aposta num futuro poliglota. A partir de agora Avignon passa a ter uma língua convidada, e logo a abrir a escolha revela-se corajosa, tendo em conta velhas rivalidades. Tiago Rodrigues escolhe o inglês, exatamente por ser uma língua dominante, considerando que é a sua banalização que o empobrece: “O património da língua inglesa está em risco, e é vulnerável, apesar de ser uma língua usada por todos.”

Esta decisão permite-o convocar alguns artistas que Avignon nunca viu, e que ali se estreiam em 2023, mas que Portugal, e também Tiago Rodrigues, conhece bem, como é o caso Tim Etchells, Tim Crouch, Elevator Repair Service ou outros como Royal Court Theatre.

Por outro lado, escolhe também companhias francesas que trabalham sobre textos ingleses como é o caso do espectáculo “Le Songe” de Gwenael Morin, concebido a partir de Shakespeare, ou abre espaço, com “Trilogie 72”, a uma homenagem à música anglo-saxónica, que, neste caso, se ajoelha perante Neil Young, Lou Reed ou David Bowie. Tim Crouch convida-nos a ver olhar para o Rei Lear a partir do lugar do bobo em “Truth’s a Dog Must to Kennel”, e apresenta aos franceses uma das suas peças mais antigas “An Oak Tree”.

Ecológico, alegre, complexo, exigente, o Festival de Avignon deve também ser alegre enquanto “aventura singular” diz o diretor artístico que foi considerado por um dos responsáveis políticos presentes na conferência como um filho da Revolução dos Cravos. Por isso, e como é habitual em Tiago Rodrigues, o otimismo é mais forte que o pessimismo: “o festival é uma alegre reunião entre artistas, habitantes hospitaleiros e visitantes animados pela curiosidade face à diferença e pela procura de alteridade.”

Complexidades

Tiago Rodrigues afirma não querer simplificar o pensamento, nem as respostas, mas problematizar a realidade, oferecendo espectáculos que podem contrapor-se aos discursos reducionistas e populistas que desafiam a democracia. A programação não se escusa, por isso, a temas mais duros ou perturbadores.

É o que acontece no espectáculo de Carolina Bianchi & Cara Cavalo “A Noiva e O Boa Noite Cinderela”, no qual é abordado o feminicídio e a violência contras mulheres, e que colocará a “audiência numa antecâmara do inferno”; em “L’ Addiction” de Tim Etchells em que estarão em palco questões de poder, vício; ou em “Extinction”, de Julien Gosselin, composto a partir de textos de Thomas Bernhard e Arthur Schnitzler, e abordando o tema do apocalipse.

A possibilidade de cataclismo, provavelmente no estilo mais parodiado, como é comum a Philippe Quesne, aparece também numa proposta da sua autoria que é anunciada como “epopeia retro futurista". Inspira-se no “Jardim das Delícias” de Jérôme Bosch, a quem rouba o nome.

A questão do racismo é clara na oferta dos Elevator Repair Service, que colocam em palco um debate que decorreu entre o escritor James Baldwin e o pensador conservador William F. Buckley Jr. em 1965, na Universidade de Cambridge. Por outro lado Émilie Monnet “apropria-se” da história de Marguerite Duplessis, memória da luta de uma mulher escrava, a primeira a reivindicar os seus direitos perante um tribunal no Québec. E Milo Rau, em “Antígona na Amazónia”, traz as questões dos Sem Terra, e dos activistas indígenas.

“Welfare”, de Julie Deliquet, transforma o Palácio dos Papas num centro de Segurança Social inspirado no filme com o mesmo nome, de 1973, do realizador norte-americano Frederick Wiseman. Em “Neandertal”, de David Geselson, o desafio passa por perceber como é que Sapiens se transforma em Sapiens.

Em “Les Émigrants”, de Krystian Lupa, há um regresso a Austerlitz e ao trabalho do escritor W. G. Sebald, e também um aprofundamento da dor da diluição da identidade. Algo que também poderá estar presente no trabalho de Susanne Kennedy & Marcus Selg “Angela (a strange loop)”, mergulho na realidade de uma influencer que vive dentro do YouTube. Rébecca Chaillon, em “Carte Noire Nommée Désir”, coloca em palco a história de dez mulheres negras.

De Keersmaeker, Pisani, Monnier e alguns números

Não faltarão à chamada também outros nomes importantes da cena europeia como é o caso de Anne Theresa De Keersmaeker, que apresentará um nova criação que parte das cantigas de trabalho, e em particular do legado de afro-americano Robert Johnson. Martine Pisani, outro grande nome, aparece em dupla com Michikazu Matsune, num espectáculo que usa arquivos, memórias e notas dos seus primeiros trabalhos. Mathilde Monnier, com “Black Lights”, espectáculo baseado em textos escritos por mulheres de todo o mundo.

Na senda que nos leva da cidade à natureza, a proposta que se afirma é a de Caroline Barneaud & Stefan Kaegi (director dos Rimini Protokoll), um trabalho colaborativo em que vários artistas, incluindo Sofia Dias & Vitor Roriz (cúmplices de vários trabalhos de Tiago Rodrigues), participam, convidando o público a passear pela floresta. Chama-se “Paysages Partagés - 7 pièces en plein air sous les arbes”, e quer que o espectador se perca e volte a encontrar-se.

A despedida marcada para 25 de julho caberá ao próprio Tiago Rodrigues, que apresentará “By Heart”, um dos seus trabalhos mais pessoais e nos quais o próprio diretor experimenta a vulnerabilidade, sozinho no palco, porque se há um tema que percorre toda esta programação é essa mesma “hipersensibilidade” à vulnerabilidade. Colectiva ou individual, porque no seu entender, a vulnerabilidade “é um ingrediente rico da experiência humana”.

Dir-se-ia ainda que o Festival de Avignon, na sua 77ª edição, apresenta uma estranha coincidência de número duplos, tendo em conta que 55 por cento das produções pertencem a mulheres, e que em 44 propostas apresentadas 33 correspondem a novas criações.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: cmargato@expresso.impresa.pt

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