A programação da 77ª edição do Festival de Avignon, com a assinatura de Tiago Rodrigues, já foi apresentada. O reencontro naquele que é um dos principais palcos da Europa quererá responder aos desafios do mundo, mas sobretudo a algo que é tão íntimo quanto colectivo, a vulnerabilidade, “ingrediente rico da experiência humana”. A festa do reencontro começa a 5 de julho e termina a 25
É na rua que começará aquela que é vista por Tiago Rodrigues como uma festa e um lugar de encontro. A primeira edição do Festival de Avignon que o português programa agarra numa das frases ditas pelo seu fundador, Jean Vilar, em 1947 – “Avignon nos reunirá, e Avignon existirá” –, e atribui-lhe o valor de “código genético.
Para o ex-director do Teatro D. Maria II este festival nasceu dessa vontade de partilha, celebração e reunião e de “um casamento improvável” entre a exigência de qualidade, a descoberta e a complexidade”.
A expressão “casamentos improváveis” é aliás central na programação que concebeu, na medida em que é na relação entre alguns paradoxos que reside o corpo teórico que fundamenta as suas escolhas, e foi, de resto, por aí que começou na conferência de anúncio da programação realizada no dia 5 de Abril – três meses antes do início do principal festival de teatro da Europa e um dos mais importantes do mundo.
Os compromissos de Tiago Rodrigues variam muitas vezes entre a proximidade do festival com os territórios e populações onde decorre e a vontade de alargar a paisagem, entre a rua e os dourados da ópera.
G.R.O.V.E. de Bintou Dembélé, figura histórica do hip-hop, é um bom exemplo desse tom, dado, desde logo, na abertura.
Escolhido como espectáculo que abre a 77ª edição, a criação de Dembélé deambula pelas ruas de Avignon até chegar ao palco da ópera de Grand Avignon, esbatendo fronteiras entre artes, lugares, espaços, tempos.
Outra das frentes da programação não retira o privilégio que é dado à língua francesa, mas aposta num futuro poliglota. A partir de agora Avignon passa a ter uma língua convidada, e logo a abrir a escolha revela-se corajosa, tendo em conta velhas rivalidades. Tiago Rodrigues escolhe o inglês, exatamente por ser uma língua dominante, considerando que é a sua banalização que o empobrece: “O património da língua inglesa está em risco, e é vulnerável, apesar de ser uma língua usada por todos.”
Esta decisão permite-o convocar alguns artistas que Avignon nunca viu, e que ali se estreiam em 2023, mas que Portugal, e também Tiago Rodrigues, conhece bem, como é o caso Tim Etchells, Tim Crouch, Elevator Repair Service ou outros como Royal Court Theatre.
Por outro lado, escolhe também companhias francesas que trabalham sobre textos ingleses como é o caso do espectáculo “Le Songe” de Gwenael Morin, concebido a partir de Shakespeare, ou abre espaço, com “Trilogie 72”, a uma homenagem à música anglo-saxónica, que, neste caso, se ajoelha perante Neil Young, Lou Reed ou David Bowie. Tim Crouch convida-nos a ver olhar para o Rei Lear a partir do lugar do bobo em “Truth’s a Dog Must to Kennel”, e apresenta aos franceses uma das suas peças mais antigas “An Oak Tree”.
Ecológico, alegre, complexo, exigente, o Festival de Avignon deve também ser alegre enquanto “aventura singular” diz o diretor artístico que foi considerado por um dos responsáveis políticos presentes na conferência como um filho da Revolução dos Cravos. Por isso, e como é habitual em Tiago Rodrigues, o otimismo é mais forte que o pessimismo: “o festival é uma alegre reunião entre artistas, habitantes hospitaleiros e visitantes animados pela curiosidade face à diferença e pela procura de alteridade.”
Complexidades
Tiago Rodrigues afirma não querer simplificar o pensamento, nem as respostas, mas problematizar a realidade, oferecendo espectáculos que podem contrapor-se aos discursos reducionistas e populistas que desafiam a democracia. A programação não se escusa, por isso, a temas mais duros ou perturbadores.
É o que acontece no espectáculo de Carolina Bianchi & Cara Cavalo “A Noiva e O Boa Noite Cinderela”, no qual é abordado o feminicídio e a violência contras mulheres, e que colocará a “audiência numa antecâmara do inferno”; em “L’ Addiction” de Tim Etchells em que estarão em palco questões de poder, vício; ou em “Extinction”, de Julien Gosselin, composto a partir de textos de Thomas Bernhard e Arthur Schnitzler, e abordando o tema do apocalipse.
A possibilidade de cataclismo, provavelmente no estilo mais parodiado, como é comum a Philippe Quesne, aparece também numa proposta da sua autoria que é anunciada como “epopeia retro futurista". Inspira-se no “Jardim das Delícias” de Jérôme Bosch, a quem rouba o nome.
A questão do racismo é clara na oferta dos Elevator Repair Service, que colocam em palco um debate que decorreu entre o escritor James Baldwin e o pensador conservador William F. Buckley Jr. em 1965, na Universidade de Cambridge. Por outro lado Émilie Monnet “apropria-se” da história de Marguerite Duplessis, memória da luta de uma mulher escrava, a primeira a reivindicar os seus direitos perante um tribunal no Québec. E Milo Rau, em “Antígona na Amazónia”, traz as questões dos Sem Terra, e dos activistas indígenas.
“Welfare”, de Julie Deliquet, transforma o Palácio dos Papas num centro de Segurança Social inspirado no filme com o mesmo nome, de 1973, do realizador norte-americano Frederick Wiseman. Em “Neandertal”, de David Geselson, o desafio passa por perceber como é que Sapiens se transforma em Sapiens.
Em “Les Émigrants”, de Krystian Lupa, há um regresso a Austerlitz e ao trabalho do escritor W. G. Sebald, e também um aprofundamento da dor da diluição da identidade. Algo que também poderá estar presente no trabalho de Susanne Kennedy & Marcus Selg “Angela (a strange loop)”, mergulho na realidade de uma influencer que vive dentro do YouTube. Rébecca Chaillon, em “Carte Noire Nommée Désir”, coloca em palco a história de dez mulheres negras.
De Keersmaeker, Pisani, Monnier e alguns números
Não faltarão à chamada também outros nomes importantes da cena europeia como é o caso de Anne Theresa De Keersmaeker, que apresentará um nova criação que parte das cantigas de trabalho, e em particular do legado de afro-americano Robert Johnson. Martine Pisani, outro grande nome, aparece em dupla com Michikazu Matsune, num espectáculo que usa arquivos, memórias e notas dos seus primeiros trabalhos. Mathilde Monnier, com “Black Lights”, espectáculo baseado em textos escritos por mulheres de todo o mundo.
Na senda que nos leva da cidade à natureza, a proposta que se afirma é a de Caroline Barneaud & Stefan Kaegi (director dos Rimini Protokoll), um trabalho colaborativo em que vários artistas, incluindo Sofia Dias & Vitor Roriz (cúmplices de vários trabalhos de Tiago Rodrigues), participam, convidando o público a passear pela floresta. Chama-se “Paysages Partagés - 7 pièces en plein air sous les arbes”, e quer que o espectador se perca e volte a encontrar-se.
A despedida marcada para 25 de julho caberá ao próprio Tiago Rodrigues, que apresentará “By Heart”, um dos seus trabalhos mais pessoais e nos quais o próprio diretor experimenta a vulnerabilidade, sozinho no palco, porque se há um tema que percorre toda esta programação é essa mesma “hipersensibilidade” à vulnerabilidade. Colectiva ou individual, porque no seu entender, a vulnerabilidade “é um ingrediente rico da experiência humana”.
Dir-se-ia ainda que o Festival de Avignon, na sua 77ª edição, apresenta uma estranha coincidência de número duplos, tendo em conta que 55 por cento das produções pertencem a mulheres, e que em 44 propostas apresentadas 33 correspondem a novas criações.
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