Alberto Manguel: "A minha biblioteca vem para Lisboa"
Discurso proferido este sábado por Alberto Manguel na cerimónia de doação da sua biblioteca particular à cidade de Lisboa, com vista à criação do futuro Centro de Estudos da História da Leitura
Discurso proferido este sábado por Alberto Manguel na cerimónia de doação da sua biblioteca particular à cidade de Lisboa, com vista à criação do futuro Centro de Estudos da História da Leitura
Alberto Manguel
É uma honra e um prazer estar aqui, em Lisboa, e saber que a minha biblioteca vai agora ter uma casa, depois de esperar pacientemente, durante tantos anos, dentro de caixotes. "Os pequenos livros têm o seu destino", escreveu algures no século XIII um leitor resignado. As bibliotecas, grandes e pequenas, têm também o seu destino.
A minha amizade com Lisboa já dura há várias décadas. Ao longo dos anos, visitei a cidade muitas vezes, a convite de diferentes instituições, para dar palestras ou assistir a seminários, circunstâncias que tomei sempre como um pretexto feliz para revisitar Lisboa e prosseguir a nossa conversa, num tom a que costumo chamar Lisboano: tranquilo, civilizado, despretensioso, idêntico a uma cidade onde, segundo Álvaro de Campos, "Vem-nos tudo de fora, como a chuva". Gosto de chuva e da modéstia de procurar ver tudo a partir do outro lado do espelho. Fiquei, por isso, exultante quando o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Dr. Fernando Medina, me convidou a trazer a minha biblioteca para a cidade, para que se torne um centro público de investigação. Fui obrigado a abandonar o paraíso (considerado por Borges um sinónimo de biblioteca) na pequena cidade francesa onde havia instalado os meus livros; agora, esses livros vão ressuscitar na terra dos antepassados de Borges. Sinto-me orgulhoso e feliz ao doar a minha biblioteca de muitos milhares de livros a Lisboa, uma cidade que, nesta época de insanidade universal (mesmo sabendo que nenhum lugar na Terra é uma utopia perfeita), de certa forma se tornou um refúgio para o diálogo civilizado e a dignificada resistência.
Foi a minha editora portuguesa, Bárbara Bulhosa, da Tinta-da-china, quem deu início a este projeto. A Bárbara sabia que os meus livros estavam desde 2015 em caixotes, enterrados vivos, porque publicara havia pouco, em português, a elegia "Embalando a Minha Biblioteca". Encontrou-se com Fernando Medina e apresentou-lhe a proposta. E a verdade é que se deparou com a mais rara das criaturas, tão rara quanto um unicórnio: um político iluminado e atencioso. Fernando Medina respondeu imediatamente com um entusiasmado "Sim".
Há meio século que escrevo sobre leitura, bibliotecas e livros, e vivo no meio de livros desde a infância. Entre os muros da embaixada da Argentina (o meu pai era diplomata) muito pouco acontecia, pelo menos quando comparado com as aventuras fabulosas das minhas personagens literárias preferidas. Desde que aprendi a ler, a complexa experiência do mundo começou por se me apresentar através das palavras, de tal forma que, quando me deparei com a experiência real, dispunha de histórias que me permitiam descrevê-la. Tudo o que alguma vez me tenha acontecido, aconteceu primeiro nalgum livro. Para voltar a Álvaro de Campos: "Olhe: tudo é literatura." Mais tarde, em todos os lugares onde vivi (e foram bastantes), instalei uma biblioteca. As bibliotecas, como todos sabemos, são essenciais para uma sociedade letrada, pois é nos livros que assenta a nossa identidade.
Devido a este poder de nos contarem quem somos, é muito antiga a reverência que a maior parte de nós sente pelos livros. Uma prática iniciada no começo da Idade Média prescrevia que todos os livros que deixassem de ter uso fossem reverencialmente enterrados no cemitério, muitas vezes na sepultura de um erudito ou num aposento especial do templo. Se um livro caísse ao chão, deveria ser beijado antes de reposto na prateleira. Lembro-me da minha avó, aos 90 anos, a baixar-se dolorosamente para apanhar do chão um livro que tinha deixado cair (qualquer livro, até uma agenda telefónica), levando-o aos lábios com reverência. A minha avó sentia um tal respeito pelos livros que, sempre que eu parava de ler, ela dizia-me que fechasse o livro antes de sair da sala; se o deixasse aberto, advertia-me, o demónio do oblívio faria com que eu me esquecesse de tudo o que aprendera.
Descobri muito cedo que a leitura é uma atividade solitária e íntima, e que isto é apenas o primeiro passo: depois de lerem em privado, os leitores desejam partilhar as suas descobertas com outros leitores, numa espécie de contaminação erótica saudável. Ler permite que partilhemos experiências do mundo com os outros seres humanos; as bibliotecas são repositórios vivos destas experiências privadas e comunitárias.
Aqueles que atacam a leitura, ou melhor, aqueles que atacam os leitores devido ao que consideram ser um entretenimento egotista e autocentrado, baseiam a sua acusação na perceção de que, aos olhos dos agressores, a leitura instaura uma distância entre os leitores e o mundo, aparta-os dos outros, permite que se deixem levar pela fantasia e o faz-de-conta, fornece-lhes um álibi para não tomarem parte nos assuntos da comunidade. Estes céticos são parecidos com o Velho do Restelo camoniano, porque, na verdade, como todo o verdadeiro leitor sabe, a leitura exerce precisamente o efeito contrário e a aventura da viagem será bem-sucedida na descoberta de novos e maravilhosos territórios. Ler faz-nos enfiar o nariz na realidade, abre portas e janelas para os assuntos humanos, recusa-nos a licença de desviarmos o olhar daquilo que de mais terrível e mais maravilhoso acontece no mundo e, acima de tudo, estabelece a nossa ligação com todos os leitores, próximos ou distantes, sejam contemporâneos ou pertençam ao passado longínquo ou ao futuro expectante. De todas as vezes em que estamos a ler, seja onde for, acedemos a uma comunidade de leitores que teve início há milhares de anos num deserto distante, uma comunidade que apenas poderá desaparecer quando o último homem desaparecer – o que talvez aconteça mais cedo do que se pensa, caso continuemos com este comportamento aberrante. No século I a.C., Diodoro Sículo comentou que sobre a porta das ruínas de uma antiga biblioteca no Egipto podia ler-se as palavras "CLÍNICA DA ALMA". A designação é verdadeira para todas as bibliotecas, e espero que seja verdadeira para o Centro de Estudos da História da Leitura.
Todavia, na maior parte das sociedades, é difícil ultrapassar o preconceito relativo ao acto intelectual e ao medo daquilo que o leitor possa fazer no santuário secreto de uma página. Os leitores são bastas vezes ridicularizados e excluídos, e prefere-se o cidadão-consumidor ao cidadão-leitor. A verdade é que, apesar de a leitura ser na sua essência individual, quase sempre induz o desejo de partilharmos impressões e paixões, amores e antipatias, e de estabelecermos laços com outros leitores, possibilitando aquilo a que Francisco de Quevedo chamou, no século XVII, "conversas com os mortos". Uma biblioteca é um ponto de encontro de almas, símbolo da identidade passada e presente de um povo, evidência de que a cultura não é uma colecção morta de relíquias oficiais, mas antes a renovação constante daquilo que temos em comum, para lá das fronteiras imaginárias, enquanto parte da nossa herança universal. Uma biblioteca permite-nos uma modesta espécie de imortalidade.
Mas até uma biblioteca de milhares de livros tem de começar apenas com um ou dois. Por isso, quero começar a minha doação à cidade de Lisboa com dois livros que me são particularmente queridos.
O primeiro é uma Bíblia manuscrita, com origem num scriptorium alemão do século XIII, totalmente escrita em velino e que contém várias iluminuras muito bonitas. A encadernação é mais tardia, do século XVI.
O segundo é um único volume da conhecida enciclopédia Labor, publicada em Barcelona em 1928. Trata-se da "Historia de la Literatura Arábigo-Española", de Ángel González Palencia. Enquanto objecto, não é um livro com especial valor. Contudo, traz no anterrosto a assinatura do seu proprietário, "Jorge Luis Borges", e a data, "Buenos Aires, 1934". Em seguida, surgem dez notas manuscritas por Borges, compondo a estrutura completa do famoso conto 'A busca de Averróis', que ele escreveria treze anos mais tarde e publicaria, em 1949, no volume "O Aleph".
Nas cerimónias de casamento na Argentina, é costume dizer-se ao pai da noiva: "Não vai perder uma filha, vai ganhar um filho." Hoje, digo a mim mesmo: "Não vais perder uma biblioteca, vais ganhar uma cidade mágica."
Obrigado.
(Tradução de Madalena Alfaia)
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