Cultura

Ele utiliza até ao limite tudo o que aprendeu ao longo da vida: Joan Margarit

Joan Margarit é um dos poetas mais relevantes da literatura catalã e, desde esta quinta-feira, o 44º escritor hispanófono a receber o Prémio Cervantes. Depois de autores como Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, María Zambrano e Mario Vargas Llosa, chegou a vez do poeta que “utiliza até ao limite tudo o que aprendeu ao longo da vida”

Joan Margarit
NurPhoto/Getty Images

Talvez o leitor não o conheça, talvez este seja o primeiro poema que dele lê:

Discurso do método

Em criança, eu já procurava as janelas
para fugir com o olhar.
Desde então, quando entro nalgum sítio,
Fixo onde é a porta e onde deixei o casaco.
Liberdade, para mim, quer dizer fuga.
O mundo está cheio de portas,
como o sexo, afinal, em caso de emergência.
Mas todas se vão fechando, e depressa,
para fugir, ficarão somente aquelas
janelas da infância.
De par em par abertas para saltar.

Talvez este tenha sido apenas o primeiro poema, não o último - espero. Traduzido do catalão para português por Miguel Filipe Mochila, pode encontrar este e outros versos na antologia “Misteriosamente Feliz”, publicada em 2015 pela Língua Morta. Joan Margarit acompanhou a seleção e tradução dos poemas para português e no prólogo dessa mesma obra saúda os leitores portugueses e explica: “O poema surge do interior do poeta, da sua própria vida, e ainda assim deve falar daqueles subtilíssimos sentimentos que não lhe pertencem a ele apenas, pois nesse caso seria um mau poema, na exacta medida em que não poderia interessar a ninguém mais do que a si mesmo. Os poemas devem construir-se a partir de algo que, constituindo parte da vida do poeta, pertença igualmente à dos demais”. Assim é. Aos 81 anos, aquele que é considerado o poeta vivo mais lido da literatura catalã pertence a essa categoria de escritores que faz das experiências de vida e do próprio tempo vivido o centro da sua obra literária. Poeta de relatos sentimentais, traz o amor, a dor e a idade ao colo.

O poema Identidade começa precisamente assim: “O que fazer, afinal, das palavras? / Se me quero encontrar, não posso procurar / senão em dois sítios: na infância e no velho que hoje sou”. Margarit levou duas vidas em paralelo: a de arquiteto e a de poeta, e por isso escreveu intensa e tranquilamente longe dos círculos literários. Nesse sentido, a sua obra poética é uma casa e o poeta aquele que tranca portas e janelas para não perder o que viveu. Usa a poesia para fazer frente ao tempo e à dor, à doença e à morte, às injustiças e à perda. “Partiste e resta apenas / este corpo devastado por um saque / que amo como te amei a ti.” Margarit alumia os cantos mais escuros da casa e vive sem esquecer: “Na nossa memória ficaram / os vossos nomes numa pequena praia / que não figura nos mapas dos navios. // Aqui, quão perto estão uma da outra, minhas filhas, depois de tanto tempo”. Precisamente as suas duas filhas, Anna e Joana, atravessam transversalmente a poesia do pai, Joan. A primeira morreu em 1967 e a segunda em 2001, depois de 30 anos com grave deficiência mental (síndrome Rubinstein-Taybe).

“Os espelhos da noite reflectiam / o seu sorriso, aquele sorriso que semeou / nos últimos trinta anos à nossa volta. / E perguntei: que fazes aqui, Joana? / De todos os lados respondeu: afasto-me / para outra vez vos destruir a vida” - assim termina o poema Metro Fontana, um dos que publicou um ano após a morte da filha. A Joana, o pai e poeta dedicou um livro homónimo em 2002, uma espécie de diário sobre os seus últimos oito meses de vida, em cujo prólogo Margarit escreveu: “Não há nada comparável a poder cuidar de uma pessoa que se ama, mas é difícil encontrar alguém como a Joana, com quem se estabelece uma relação de uma alegria e de uma ternura tão profundas que, ao cabo dos anos, já não se sabe ao certo quem cuida de quem. O sentimento que agora me domina é o desamparo”. São muitos os poemas em que o poeta catalão fala sobre o ofício de cuidar da filha, mas também da mulher, da casa e da memória, de si próprio e dos seus versos. O que lhe interessa fundamentalmente é a relação entre vida e poesia e a sua obra terminará - segundo o próprio - quando a morte assim o determinar.

Foi na ilha de Tenerife que Margarit começou a escrever, aos 16 anos, para nunca mais parar. O primeiro foi um poema de amor que nunca mostrou, mas que guarda na memória com carinho. “Escrever um poema é para mim uma forma de amar”, afirmou em setembro de 2014 no prefácio da edição castelhana de todos os seus poemas. Ao longo da carreira, publicou mais de 20 obras, que considera que fazem parte de “um todo que avança e se define à medida que a vida se constrói - ou destrói”. O que ainda hoje busca é o fio que liga o presente ao passado: “Para compreender o que a minha avó representou no começo da minha vida tive de comparar o que a vida de Joana representou para mim e também a sua morte. (...) E também tenho de ligar a minha atual ideia do que é a poesia com o professor que me ensinou a escrever sem gramática. Demorei muitos anos a distinguir uma preposição de um advérbio, mas desde o primeiro momento ele ensinou-me a escrever corretamente”. Foi assim que nasceu o poeta, é assim que ele vive - aprendendo tudo de novo.

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