A nau Victoria foi a primeira a dar a volta ao mundo. 500 anos depois tem réplica na foz do Guadalquivir
A expedição comandada por Fernão de Magalhães entrou no Atlântico há 500 anos, a 20 de setembro de 1519. Na foto, réplica da nau Vitória ao largo de Sanlucar de Barrameda
JON NAZCA/REUTERS
Sanlucar de Barrameda, na margem esquerda da foz do Guadalquivir, engalanou-se para celebrar o V Centenário da partida de Fernão Magalhães, o navegador português que mostrou ao mundo que era possível viajar entre os oceanos Atlântico e Pacífico. A sua morte nas Filipinas fez com que fosse o espanhol Sebastián Elcano a fazer a primeira viagem de circum-navegação
Vinte e seis dias depois de Fernão de Magalhães ter assinado o seu testamento em Sevilha — a 24 de agosto de 1519 — a frota que comandava entrou finalmente no Oceano Atlântico, ao largo de Sanlucar de Barrameda, na margem esquerda da foz do Guadalquivir. As cincos naus que compunham a frota comandada pelo ousado navegador português queriam encontrar uma nova rota para chegar às ilhas Molucas, para importar o precioso e aromático cravinho.
As naus zarparam de Sevilha a 10 de agosto, mas Magalhães embarcou mais tarde, quando a armada se aproximava da navegação no Atlântico.
O navegador não adivinhava que não regressaria dessa grande aventura que garantiria à coroa espanhola uma rota alternativa àquela que era dominada pela coroa portuguesa para comerciar especiarias. Magalhães também não imaginava então que a audaz expedição que planeara haveria de ficar para sempre conhecida por ter provado que a Terra é efetivamente redonda.
O navegador português Fernão de Magalhães zarpou de Sanlucar de Barrameda a 20 de setembro de 1519. Foi morto nas Filipinas e não completou a viagem
D.R,
A prova dessa tese que muitos contrariavam foi fruto do acaso, e a expedição que apenas queria encontrar uma nova rota para as ilhas Molucas foi a primeira viagem de circum-navegação.
Porque é que muitos espanhóis ‘nacionalizaram’ Magalhães?
Fernão de Magalhães era português. Deste facto ninguém duvida. Poderá ter nascido em Sabrosa, como defende José Marques (presidente da unidade que coordena as comemorações do lado português), ou poderá ter nascido no Porto, como admite Paulo Jorge de Sousa Pinto, investigador do CHAM da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Os historiadores Sousa Pinto e Alexandra Curvelo — membros do comité científico do colóquio internacional que se realizou na Biblioteca Nacional — são unânimes em reconhecer os profundos conhecimentos de Fernão de Magalhães como navegador.
Sousa Pinto lembra que, numa altura em que as rotas de navegação estavam profundamente dependentes do Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494 (que quase repartiu o mundo entre Portugal e Espanha), Magalhães ofereceu os seus serviços a Carlos I de Espanha, porque teria caído em desgraça junto do rei D. Manuel.
O génio da navegação tinha 39 anos quando partiu para a sua expedição ao serviço da coroa espanhola. Visto do futuro, podemos dizer que D. Manuel, rei de Portugal, avaliou mal o projeto de Magalhães e recusou-lhe “um aumento da sua pensão”, disse à agência Lusa o historiador Luís Filipe Thomaz, autor do livro “O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer”.
Num tempo em que Portugal e Espanha eram duas grandes potências marítimas, o Tratado de Tordesilhas como que dividia o mundo já conhecido e o que ainda estava por achar, entre os dois reinos ibéricos. “Magalhães propunha-se simplesmente demonstrar que as ilhas Molucas estavam na demarcação de Castela”, explica Luís Filipe à Lusa.
Este investigador defende que Carlos I de Castela, deu ordens escritas ao navegador português para “não dar a volta ao mundo”, e não entrar na metade que Tordesilhas atribuía a Portugal.
Réplica da nau Victoria, ao largo de Sanlucar de Barrameda. A Victoria foi a única das cinco naus da armada de Magalhães que regressou a Espanha
JON NAZCA/REUTERS
Carlos I, marido de Isabel de Portugal e pai de Filipe II de Espanha (I de Portugal) acolheu com agrado a proposta feita pelo experiente navegador que integrara a armada que conquistara Malaca em 1511, comandada por Afonso de Albuquerque.
O homem que seria aclamado imperador [Carlos V] nos anos seguintes, sabia que a rota proposta por Magalhães era a única que lhe garantiria melhores condições de acesso ao comércio do cravinho, uma preciosa especiaria que abundava no arquipélago das Molucas.
A expedição deixou Sevilha, desceu o Guadalquivir ao serviço da Coroa espanhola, partindo do porto de Sanlúcar de Barrameda em 20 de setembro de 1519, com uma frota de cinco naus e 237 tripulantes de várias nacionalidades, a maioria espanhóis.
Cronista italiano foi um dos raros sobreviventes
A viagem foi dolorosa. Dos 237 homens e cinco naus que zarparam de Sevilha em agosto de 1519, regressaram, em setembro de 1522, 18 marinheiros famélicos numa única nau.
Antonio Pigafetta, cronista italiano — cujo precioso relato permite reconstituir os acontecimentos — pagou para acompanhar Magalhães e sobreviveu às duras provas vividas pela armada comandada pelo português.
A travessia da passagem que liga o Atlântico ao Pacífico pelo sul da Argentina “foi muito difícil”, diz Sousa Pinto: “Houve um motim entre a tripulação e um dos navios abandonou a frota, iniciando a viagem de regresso. Muitos dos homens [que estavam a bordo] acusaram Magalhães de estar ao serviço do rei de Portugal”, o que provocou um clima de grande tensão durante a viagem.
O génio navegador de Magalhães permitiu-lhe cruzar com êxito o estreito que haveria de ser batizado com o seu nome e, mais do que isso, intuir que o sistema de navegação no Pacífico — ventos e correntes — era uma réplica daquele que caracterizava o Atlântico, oceano bem conhecido de portugueses e espanhóis.
“Depois de cruzar o estreito, Magalhães decidiu navegar para Norte para chegar às Molucas e acabou por ir dar às Filipinas, depois de perder muitos homens”, explica Sousa Pinto, lembrando que o projeto de Magalhães era encontrar uma rota alternativa para chegar às Molucas e regressar por essa mesma estrada marítima.
O erro de Magalhães
O Oceano Atlântico “demorou 55 anos a ser explorado e é menor do que o Pacífico”, disse Luís Filipe Thomaz à Lusa, lembrando que Magalhães era um perito na arte da navegação. “Se não fosse, não tinha conseguido fazer a viagem que fez”.
Calculou mal a “posição das Molucas em relação ao meridiano”, explica Luís Filipe Thomaz. É provável que quando chegou às Filipinas, em 1521, soubesse “que estava mais ou menos a norte das Molucas. Por acaso, as Molucas estão ligeiramente mais para leste do que as Filipinas, mas é uma diferença pequena. Portanto, deve ter percebido que se tinha enganado, que as Molucas ficavam no hemisfério português” — de acordo com o Tratado de Tordesilhas.
“Há uma coisa que é perfeitamente irracional: faz aquela viagem toda e quando está a uma semana de viagem das Molucas, ou menos, em vez de ir para as Molucas, que eram o seu objetivo, anda a passear pelas Filipinas, de ilha em ilha, a imiscuir-se em lutas tribais onde encontrou a morte", diz o autor de “O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer”.
Imagem do Santo Niño de Cebu
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O legado que ficou no arquipélago das Filipinas
A 16 de março de 1521, a armada chegou a Cebú – que hoje faz parte das Filipinas, o terceiro maior país católico do mundo. O navegador Fernão de Magalhães, para os portugueses – ou Magallanes para os espanhóis – foi bem recebido.
Um mês depois, a 14 de abril, ofereceu três presentes ao chefe local e à sua principal consorte: uma cruz, uma imagem da Virgem Maria e outra do Santo Niño. O rei local e a rainha batizaram-se, ela recebeu o nome cristão de Joana e, quinhentos anos depois, o Santo Niño é venerado por 80 milhões de filipinos, em vários pontos do mundo, a cada terceiro domingo de janeiro.
No século XXI, o Santo Nino de Cebú também é um marco histórico-diplomático do grande contributo para a globalização que o navegador português Fernão de Magalhães trilhou há 500 anos, numa ousada e tormentosa viagem que juntou um cronista italiano, marinheiros gregos, portugueses, espanhóis e de várias outras nacionalidades, e foi financiada por Carlos I de Castela.
Uma verdadeira parceria do saber ibérico
Magalhães foi morto nas Filipinas a 27 de abril de 1521, numa escaramuça que pode ter sido uma armadilha. Duarte Barbosa, seu cunhado e segundo piloto, foi morto pouco depois, cabendo a difícil tarefa de comandar o que restava da frota ao espanhol Sebastián Elcano, contra-mestre de uma das naus.
Elcano teve a coragem de trilhar o caminho de regresso pelo Oceano Índico, rota controlada pelos portugueses — interdita aos espanhóis pelo Tratado de Tordesilhas; preferiu arriscar ser capturado a desafiar a morte numa rota para a qual não tinha conhecimentos de navegação.
A viagem de circum-navegação só aconteceu porque Magalhães morreu, o que mostra que Portugal não tem qualquer espécie de autoria neste grande empreendimento espanhol. No entanto, foi em Portugal que Magalhães se formou como navegador e adquiriu os conhecimentos necessários para a travessia direta do Atlântico para o Pacífico.