Não posso deixar de começar por comentar o facto de ter lido dois poemas onde a dança está presente, embora de formas diferentes em cada um. Se calhar como está presente em si de uma forma muito importante.
A dança é muito importante para mim. É a forma de arte mais importante na minha vida, foi sempre. As pessoas da dança são pessoas que me acompanham a vida toda, a Isadora (Duncan) é uma pessoa muito muito da minha vida. E é também o vínculo mais forte aos impulsos da terra, aos impulsos da natureza. A dança compreende essas coisas e através dela eu toco nessas coisas, muito mais do que com as palavras.
Era isso que ia perguntar. A dança compreende essas coisas de uma forma diferente das palavras ou de outras formas de arte?
Compreende, compreende da primeira maneira. Porque a ligação do corpo à terra e a ligação do corpo ao voo, o jogo entre o chamamento da terra e a elevação é mais profundo e alcança uma dimensão anterior ao humano. Há uma unidade nessas coisas que o humano não tem, que o humano perdeu. E a linguagem é humana, a linguagem por palavras, a linguagem verbal é humana. Além de ser o que define o humano - para os gregos havia sempre um epíteto que acompanhava a noção de humano que é o humano dotado de fala, é a grande glória do humano mas é já uma produção civilizacional. Enquanto que a dança mantém a primeira ligação, a ligação animal, a ligação vegetal, a ligação mineral à essência da vida. E a dança para mim é isso tudo e eu não sei exactamente o que é, sei que é a minha primeira respiração.
E foi sempre assim?
E foi sempre assim.
Quando é que teve noção disso? Quando era pequenina, ainda?
Pequenina. Eu dançava muito pequenina. E a minha mãe dizia sempre aos amigos que tinha pena de não viver em Lisboa porque senão naturalmente me poria no conservatório,o que teria sido um grande desastre, porque eu nunca me adaptaria a uma disciplina de conservatório. (risos) Mas praticamente antes de falar eu já dançava. Naquele tempo não havia ainda classificação etária para os cinemas e os meus pais iam muito ao cinema e levavam-me, e eu dormia o tempo todo dos filmes, não é? Tenho assim umas memórias, uns relâmpagos de filmes, mas no intervalo havia música e eu ia para as coxias dançar, fazia parte do espetáculo do cinema. (risos)
Os espectadores viam dois espectáculos.
Viam dois espetáculos, porque eu ia sempre dançar no intervalo. (risos) Foi sempre qualquer coisa que me acompanhou muito. E depois, claro, foi primeiro a descoberta do ballet clássico, que é muito comum às crianças...
Muitas meninas querem ser bailarinas.
Muitas meninas querem ser bailarinas do ballet clássico, há sempre aquela narrativa, aquela beleza muito ordenada, mas muito rapidamente eu me impressionei também com a dança, com as danças de vanguarda. O Merce Cunningham veio cá quando eu andava no liceu e foi uma experiência avassaladora. O Merce, a companhia dele ao vivo, e essa mitologia sempre me acompanhou muito.
E gosta de dançar? Continua a gostar de dançar?
(risos) Gosto. Preciso. Preciso de sentir a dança. É uma coisa também muito instintiva. Se eu ouço música irlandesa quando dou por mim estou a dançar, sem me aperceber. Um pouco como os africanos quando ouvem os seus próprios ritmos de dança, também. E essas músicas da Irlanda põem-me fatalmente a dançar.(risos) O que não tem a ver com a dança, com a grande dança, mas tem a ver com essa linguagem do corpo a que eu sou muito sensível.
Por falar da dança e dessa ligação primordial, essencial, até anterior ao humano, uma ligação à terra de que a Hélia gosta bastante e que, posso talvez dizer, em Lisboa encontra pouco, a não ser nalguns sítios, nomeadamente neste onde gravámos os poemas. Privilegia esse contacto? Já não abdicaria dele? Não viveria numa urbe?
Não, Lisboa para mim é o jardim da Gulbenkian. (risos) É o único sítio onde eu respiro, é o único sítio onde marco encontros. Se tem que ser em Lisboa, que seja na Gulbenkian.
Porquê?
Ai, não sei. Porque preciso da terra, preciso das árvores, preciso dos bichos para respirar, senão não respiro, sufoco. Não sei porquê. Sei que preciso. Nós não sabemos porque é que precisamos do ar. Cientificamente sabemos que é pelas trocas do oxigénio, mas o nosso corpo não sabe porque é que precisa do ar e precisa. Eu preciso de mais do que ar, preciso de natureza, preciso de chão, de árvores, de bichos, de chuva.
Gosta menos do sol?
O sol não me deixa respirar, é verdade.
Portanto, falou há pouco da Irlanda, gosta desses ambientes onde a natureza se sente mais do que nas cidades.
Não é "gosto", é "preciso".
Ou seja, se vivesse num sítio que não tem esse ambiente não estaria bem.
Não estou bem em absoluto. (risos) É muito difícil, e anda a ser muito difícil com as alterações climáticas que andam por aí.
Porque a natureza está a mudar e as estações estão a mudar.
A natureza está a mudar, está muito seco, está muito quente. E, claro, pensa-se sempre, "vai para Inglaterra", e eu vou para Inglaterra. Mas quando estou em Inglaterra está calor e não chove. É uma espécie de uma praga que me persegue, e então não tenho para onde fugir.
Acha que essa ligação à terra tem a ver com o facto de ter crescido num ambiente como Mafra e de ter tido uma infância onde estava na rua, e brincava na rua, e tinha contacto com a natureza? Pode ter a ver com isso?
Não faço ideia. É certo que tive uma infância muito ligada à terra, tínhamos uma floresta, tínhamos mato, brincávamos sempre muito na natureza. E além disso eu vivia também bastante tempo com os meus tios camponeses e tinha aquela relação completamente diferente, a ligação do camponês à terra. Mas não sei, não faço ideia nenhuma do que é que determinou isso. Há coisas que não são muito racionais, não é? Sei que na filosofia, se se pode chamar assim, da acupuntura chinesa, isto está estudado como uma perversão do que deve ser a natureza humana. Portanto, o gostar da chuva, o gostar da humidade, o gostar das noites, o gostar da não civilização é considerado quase uma doença corrigível.
A Hélia quer corrigir?
Não, absolutamente. (risos) Embora esteja a passar muito mal, atualmente.
Essas alterações climáticas podem levar-nos a conversar sobre um dos poemas que leu, que é o poema da Primavera, onde fala dela com preocupação, digamos assim. Não é um poema a elogiar a bendita primavera em rima e os poetas que a associam a coisas só bonitas. Já não é assim?
Bem, essa sátira é um bocadinho dura, cruel, mesmo. É dura para com o lirismo em si, para com o olhar lírico e primário da poesia como acrobacia das palavras, o jogo de palavras para fazer bonitinho. Transcende a aflição da primavera, mas na verdade já não é assim. Nada é. Os ciclos naturais já não existem, nada é já coerente com os antigos movimentos da natureza. Estragámos tudo, e embora eu já não goste desses processos de auto-culpabilização, este "estragámos" na primeira pessoa do plural, todos nós somos culpados de qualquer coisa terrível, e não é assim, há culpados e não culpados e é preciso objectivar isso. Mas na verdade os ciclos estão muito alterados e quando se olha para a primavera vêem-se coisas terríveis.
Como aquelas que descreve no poema, que podem também ter a ver com esta ideia de a primavera se estar a adaptar aos costumes das pessoas, de haver uma identificação. E esses costumes estão também diferentes?
Sim, estão diferentes. Nós estamos no olho do furacão, não é? O que de certo modo é um grande privilégio para os vivos hoje. É estarmos a viver o maior processo de mutação da civilização que alguma vez existiu. É-nos muito difícil perceber isso e o nosso corpo não está adaptado a todas as potencialidades tecnológicas que nos são dadas, e isso causa uma espécie de desmembramento no indivíduo. Estamos numa mudança muito radical e muito difícil de abarcar com os nossos instrumentos, não só de raciocínio, como emocionais, como relacionais. Não há comparação possível com nenhuma outra crise de civilização que tenha havido. Portanto, as coisas estão diferentes, claro que estão diferentes, mas não se sabe sequer como estão diferentes e até que ponto estão diferentes, e a que velocidade se vão afastar cada vez mais do modelo anterior.
Não é possível avaliar agora.
Não. Nunca é possível avaliar o momento contemporâneo mas agora é ainda mais impossível. E isso é fascinante mas é também desesperante, pela percepção da nossa incapacidade de ver, de ver exatamente o que está a acontecer, e de termos a noção exata das consequências da apropriação que estamos a fazer de capacidades que não são nossas e que o nosso corpo não está desenvolvido para gerir.
Por exemplo?
Por exemplo, os nossos afetos. Nós não temos uma capacidade infinita de criar amigos. No nosso conceito, ainda hoje, um amigo é uma coisa. Neste momento, a noção de amigo amplificou-se infinitamente e transforma-se em nada, esvazia-se. Portanto, esvazia-se, e o vazio há-de dar lugar a uma outra coisa, mas essa outra coisa é fictícia, não existe. Nós não temos capacidade de ter o número de relações que nos são dadas hoje.
Estamos a falar da tecnologia.
Eu costumo dizer às pessoas do Facebook: "isso não são amigos, isso são terminais. Não são amigos, digam lá os nomes dos vossos amigos? Não podem ser vossos amigos, Quando é que foram lanchar com os vossos amigos? Não foram lanchar com os vossos amigos. Quando é que deram um abraço aos amigos? Não deram um abraço aos amigos." Portanto, o corpo está separado da noção. E isso cria rupturas que não são aceites como ruturas. A pessoa vai a cavalgar essa onda, mas a onda está vazia, a onda não tem apoio.
E cavalga a onda como se fosse uma coisa boa, se calhar.
Como se fosse uma coisa boa, um progresso, mas o nosso corpo não está feito para isso. Como a distância. Nós não temos o corpo programado para omitirmos a percepção da distância. Nós olhamos para determinadas coisas, alcançamos só com o extremo do nosso braço, mas o nosso braço estendido já não alcança nada porque tudo o que alcançámos é com teclas ou com o dedo, e são distâncias infinitas.
Que parecem próximas.
Que parecem próximas, que são avassaladoras e que não são geríveis. Que não são geríveis pela nossa formação mental, intelectual. Eu acho que as pessoas estão todas num estado de vertigem provocado por essa, eu diria disrupção, mas é mais do que isso, é um desmembramento e é uma alucinação coletiva que se está a viver. O que não significa que não seja esse o caminho, mas o nosso corpo não tem esse caminho. Um dia provavelmente o nosso corpo estará transformado, teremos grandes dedos pelo desenvolvimento do trabalho de mãos que estamos sistematicamente a fazer, teremos com certeza uma cabeça muito maior porque a atividade cerebral neurológica é muito maior, e um corpinho mais pequenino. Portanto, seremos semelhantes à imagem dos extraterrestes. Provavelmente isto vai acontecer porque as pessoas cada vez usam menos o corpo. Neste momento estamos naquele absurdo que é não usar o corpo para as coisas elementares, para a locomoção. A pessoa não caminha, mas depois ainda se apercebe que tem que muscular e então vai para o ginásio fechado, para as máquinas, em vez de pura e simplesmente caminhar. Estamos ainda nesse diálogo. Provavelmente esse diálogo vai acabar, esse tipo de preocupação, e vamos deixar que as pernas se atrofiem porque as pernas não vão mais ser usadas. Mas essa transformação levará anos, provavelmente séculos, e estamos divididos, estamos puxados por coisas que não sabemos gerir.
E como é que a Hélia pessoalmente lida com este momento que estamos a viver?
Eu digo sempre aos meus amiguinhos: "ainda estamos no poder, ainda temos botões para desligar." E um dos meus pesadelos recorrentes é justamente o botão não funcionar. Pesadelo real, pesadelo de sonho.
Estar sempre ligada.
É querer desligar o botão e não conseguir. O elevador, o televisor, seja o que for, ganha autonomia e deixa de ser possível desligar. Eu não uso redes sociais justamente por isso, porque não quero ser invadida por informação, por pessoas, por multidões, por textos, por imagens que não fui eu que escolhi ter, não sou eu que procuro. Adoro a tecnologia, resolvo os problemas informáticos de toda a gente à minha volta. É verdade, sou uma técnica informática com provas dadas. (risos) Portanto, não é aquela coisa de recusar a tecnologia. Gosto muito de máquinas, de dialogar e discutir com as máquinas, mas ainda sou eu que tenho o controlo. Portanto, ninguém entra na minha mente sem o meu consentimento.
Mas se estivesse nas redes sociais, para dar o seu exemplo, a Hélia é que escolheria quem estaria na sua rede social, logo a informação seria limitada a essas pessoas, 10 ou 20 pessoas, as que entendesse.
Mas eu não quero essa gente toda. Eu é que instalei o Facebook não só do meu namorado como de vários amigos. Sei exatamente como funciona, mas para mim não instalo. Não quero nem mais uma única pessoa na minha vida que não seja um processo de seleção muito apurado, ou um processo de empatia imediata que só pode haver corpo a corpo, só pode haver com os olhos, com o corpo. Nós nem sabemos exatamente o que existe mas existe uma química da amizade como existe uma química do sexo. Existe a química da amizade, e eu exijo isso. Isso precisa de corpo, não existe sem corpo, e ainda sou eu que tenho esse controlo. Portanto, os emails, enfim, tenho sempre uma resposta automática a dizer "não esperem respostas, mandem-me para o meu apartado uma cartinha". O engraçado é que os meus amiguinhos pequeninos, porque eu tenho muitos amiguinhos pequeninos e muitos afilhadinhos, acham imensa graça a escrever cartinhas de papel e mandam. E mandam fotografias - lá está a anomalia, o estranho disto - os pais tiram fotografias dos meninos a porem a cartinha no marco, porque já é um grande acontecimento naquela família.
A criança será a única naquela família a fazer isso.
E fica documentado com fotografia. E os pais põem no Facebook deles esse grande acontecimento que é pôr uma carta no correio.
Responde-lhes com cartas também?
Sim, sim. Muito raramente, porque sou muito preguiçosa, mas faço questão pelos aniversários, pelo Natal de fazer "snail mail" como se chama, correio caracol, correio de papel, correio físico. Agora, o meu encantamento com a internet é outro, é o encantamento da investigação. E isso é uma coisa absolutamente prodigiosa. Passo horas ao computador, mas não estou a interagir com ninguém. Ninguém entra ali na minha casa sem ter o corpo presente e sem termos combinado primeiro. (risos) Agora, a investigação é uma coisa prodigiosa, prodigiosa. O simples facto de - claro, sabendo discriminar a boa informação da má informação, que eu acho que não sou ingénua nisso, portanto sei dar esses passos - se conseguir ler um livro do século XVII, século XVIII, que alguém fez a caridade de colocar online e que está lá inteiro, e eu nunca poderia chegar àquele livro, é a coisa mais extraordinária que existe e realmente transforma a minha vida numa obsessão.
A sério?
A sério, numa obsessão informática. Porque aquelas descobertas sucessivas, aquela volúpia tremenda de ter ali bibliotecas e bibliotecas... porque praticamente só o que está protegido por direitos de autor é que não está acessível, de resto encontra-se tudo. Ainda há bocadinho eu fui descobrir uma edição com poemas bilingues do Paul Celan, assim, ali, à mão de semear. E então, isso é um encantamento absoluto.
Disse-nos que passa horas ao computador. Como é que são os seus dias?
Isso já é muito privado.
Não quero fazer-lhe perguntas privadas mas gosta de caminhar, passear, estar em casa a trabalhar? O que é que pode contar-nos?
(risos) A trabalhar não estou, porque não trabalho.
A escrita não é um trabalho.
A escrita não é um trabalho...
O trabalho foi de professora?
O trabalho foi de professora. Foi a minha profissão, foi o meu trabalho e foi a minha oficina. Também não tenho oficina, não tenho nada disso, portanto não trabalho. Quando tinha jardim trabalhava como jardineira, era um trabalho que eu fazia com muita responsabilidade e muito desaire porque aquilo não corria normalmente nada bem. (risos) Mas agora já não tenho jardim, já não trabalho. E desde aí os meus dias são... são muito passados ao computador porque é uma coisa irresistível, cada termo leva a outro, cada nome leva a outro e nunca mais se sai de lá, é um poço sem fundo maravilhoso. Agora já tenho até, porque pedi às minhas amigas que me dão tudo, uma ampulheta de areia de meia hora.
Para fazer uma pausa?
Muitas vezes não obedeço, não aguento. Aquilo passa e eu continuo, tenho que saber mais, ver mais, mas pronto, lá pedi e agora já tenho uma ampulheta de meia hora, porque os meus terapeutas mandam-me parar, não posso estar o tempo todo na mesma posição. E portanto, estou muito tempo ao computador, é muito irresistível. Antigamente vivia completamente angustiada e enervada e ia para a Biblioteca Nacional, para aquelas enciclopédias, e depois comprava aquelas enciclopédias pequeninas, porque não tinha espaço para as grandes, para ter livros de referência, para poder saber. Mas aquilo não era nada, não é? Era uma coisa tão pequenina. Agora tenho o mundo todo. E é isso. E caminho muito. Porque eu caminho, acho que posso dizer, que não é muito privado, que não conduzo, que não tenho carro, só uso transportes públicos para grandes distâncias, o resto faço tudo a pé. E faço passeios, muitos passeios.
E gosta de caminhar?
Gosto. É a única coisa assim física que gosto de fazer. Caminho muito muito, e canso toda a gente, normalmente não tenho amigos que me acompanhem. O meu namorado acompanha-me, mas normalmente os amigos ficam todos para trás. (risos)
Em algumas entrevistas que deu disse que, quando toca à escrita, não gosta de a planear como se fosse um trabalho, digamos assim, que o texto aparece. Como é que aparece? Quando está em casa ao computador, quando está a caminhar, ou é imprevisível? Como é que isso acontece?
Ao computador não aparece. Não, porque não tem espaço, a mente está cheia com a investigação. Agora aparece... eu hesito em dizer isto porque realmente tem um ar muito exótico mas, lamento muito, quando chove, aparece logo. Mas aparece tudo, aparece a energia, aparece tudo. Quando não chove é raro, aparece pouco. Quando está muito calor não há nada, não aparece nada, nem sequer me mexo, não vivo. Portanto, estou completamente dependente do clima. É uma coisa esquisita, enfim, não tenho prazer nenhum nisso. Tenho um primo pintor que me disse uma vez: "deve ser a coisa mais terrível estar dependente do clima para criar." E eu disse: "pois é."
Porque é uma coisa exterior, que não depende de si.
E incontrolável.
Mas é sempre assim? Ou seja, na primavera e no verão não aparece, para usar a sua expressão?
Depende. Se chover, aparece. (risos) Ainda por cima como isto está tudo mudado eu estou sempre com esperança. Os meus amigos, quando chove, dizem, "pois, já está a chover", e eu digo: "não. Agora tem de ser três dias de chuva para eu confiar nela." Ontem choveu maravilhosamente e eu pus ordem nos papéis, trabalhei, tinha para lá papelada, investigações, apontamentos. Hoje está assim, já não dá para nada.
Leu-nos dois poemas para esta ocasião. Quando o poema aparece, para usar a sua expressão, aparece de uma vez?
Normalmente é de rajada. Inclusivamente os longos como o que deu o livro "A Terceira Miséria" foi assim, de rajada. Apareceu todo seguido e depois nem sequer releio. Por isso é que há pouco estava a ler e estava a ver duas vezes a mesma palavra no poema, porque nunca mais olho para ele.
Porque é que não relê?
Fico agoniada. Mesmo para revisão de provas não sou capaz.
Porquê?
Não sei. Por um lado, se calhar tenho medo de não gostar. Mudar não porque eu não sou capaz de trabalhar sobre um texto. Sobre um texto criativo, porque se for sobre um pequeno ensaio, sobre uma conferência, trabalho imenso. E portanto sei bem a diferença entre os dois tipos de textos, aquilo a que eu chamo um texto inteligente, que de vez em quando faço, e que é um processo completamente diferente porque sei o que vou fazer, faço a investigação adequada, tiro os apontamentos, tenho um esquema do texto, e sigo. Escrevo com cerebralidade e faço o texto num processo completamente diferente, e depois releio e altero. Todos os trabalhos da escrita sei como são porque,às vezes, quando faço um texto de apresentação, sei como é que se faz, e faço. Os criativos não.
Para simplificar, podemos dizer que anda com os poemas dentro de si e depois saem de uma vez. É assim?
Só preciso da primeira frase. Quando aparece a primeira, depois chove. (risos) Depois vem assim, cai assim com a abundância que aquela nuvem traz.
E quando aparece essa primeira frase chove logo, ou pode andar com a frase na cabeça uns dias, umas semanas?
Posso, porque sou muito preguiçosa, isso é uma questão de preguiça. Estou com ela, estou bem até escrever, porque depois não penso mais. Quer dizer, tenho a primeira frase, sento-me e vem o resto. Esse processo, essa disciplina até de me sentar a escrever demora.
Adia-a?
Adio, adio.
Mas porquê?
Porque sou preguiçosa. Não, sou mesmo procrastinadora. Eu adio tudo o que há para fazer.
Queria ainda perguntar-lhe sobre uma ideia que li numa entrevista sua em que dizia que na sua escrita não faz distinção entre a prosa e a poesia.
Não faço, porque a escrita é igual. A grande determinante é o ritmo, a prosódia, a acentuação. Acontece muitas vezes ter uma frase numa prosa e saber que me falta ali uma palavra de três sílabas esdrúxula, e paro à espera que ela apareça porque é aquilo que falta. Como se fosse um soneto. Portanto, a musicalidade é a primeira determinação de tudo, e isso é igual para as duas coisas. Por outro lado também, o depender de uma primeira frase para continuar é semelhante na poesia e na prosa. A prosa é como se fossem muitos pequenos poemas em que eu fico à espera de uma primeira frase, que já é uma frase lá do interior do livro, para depois ter o fôlego para escrever mais um bocadinho, mas o processo é igual. E é tão semelhante que é fazível dividir a minha prosa em versos. O Vasco Graça Moura dizia sempre "lá vem ela com os decassílabos", dizia que eu até a falar falava em decassílabos, e o Almeida Faria também diz isso, e portanto é muito semelhante. A força da imagem talvez seja mais intensa na condensação do poema, mas cada vez é menos distinguível uma coisa da outra.
Última pergunta, porque não resisto: está a procrastinar alguma primeira frase que ande dentro de si neste momento?
(Gargalhada) Vamos ver. Vamos ver o ritmo dos entusiasmos. A minha palavra favorita é o entusiasmo, é ter o Deus dentro de nós, não é? Vamos ver o ritmo do corpo porque se o corpo se apaga com o clima, apaga-se tudo, estou deitada, não faço nada, não me apetece fazer nada. Portanto é assim muito montanha-russa, num dia estou muito entusiasmada e penso "ok, isto vai chegar ao fim, esta coisa que está cá dentro", outros dias faço um intervalo tão grande que fico cheia de medo, e isso é um pavor muito primitivo com que eu vivo, cheia de medo que o texto se zangue e desapareça e eu acorde e não exista nada, por minha culpa, não é? Porque desistem de estar comigo. Estou sempre com muito medo de perder um livro por causa disso, portanto é uma grande falta de domínio sobre as coisas, é passividade absoluta em relação à escrita criativa.
Se calhar podemos então dizer "esperemos que chova".
Pois, então. Eu tenho tantos amigos tão queridos que adoram sol e que dizem "mas por ti nós pedimos chuva". Vamos ver como é que corre este ano, para mim e para tudo. Para a natureza, para as secas, para os incêndios, para os bichinhos que ficam sem comer, para essas coisas todas, vamos ver.